Acordei naturalmente, não tão cedo como é costume quando estou em viagem. Seriam umas dez horas, e mesmo assim fiquei a dever umas horas de sono ao corpinho. Para este dia tinha planeado explorar a zona do museu etnográfico ao ar livre e o cemitério principal, usando o tempo restante para vaguear sem um destino específico pelo centro da cidade. O museu era uma grande incógnita. Aparentemente estava encerrado, abrindo apenas a partir de meados de Maio, quando o bilhete custa 8 Eur. Mesmo assim decidi ir à ilha onde se encontra o museu, depois de ler “reviews” positivas. Para lá chegar teria que apanhar um autocarro. Mas primeiro, havia que chegar ao centro e, sem o desejar, vi-me empastelado pela moça sul-coreana e pelo meu anfitrião. Sugeriram irmos juntos para a cidade e, claro, seria rude recusar.
Não recusando, desesperei. Os minutos passavam e não saíamos. Por fim, para cúmulo, quando o fizemos, e depois de estar já na plataforma à espera do comboio, descobri que me tinha esquecido do GPS em casa. Isso não pode ser! Lá os fiz vir a reboque para recuperar a preciosa ferramenta.
Os deuses saberão as vezes que contra mim praguejei por causa de um erro de planeamento básico…. e não é que me esqueci de considerar o Primeiro de Maio na calendarização desta viagem? E de todos os sitios, fui logo estar no único que não me interessava para este dia, comemorado à grande na Europa de Leste. Na Bielorússia seria a loucura, mas os países bálticos, como ex-Republicas da URSS serviriam. Tudo menos Finlândia, onde a festa gira em redor da malta se reunir num parque e se embriagar metodicamente até cair o sol. Se houver sol para cair, porque o tempo em Helsinquia, em quase todos os dias que aqui passei, portou-se de forma bipolar, distribuindo céu azul e sol e fortes chuvadas, de forma alternada, com transições de 1 ou 2 horas.
Portanto, pelo que percebi, o 1 de Maio aqui comemora-se mais pela malta jovem, que se reúne, numa tradição que diria “académica”, com uns chapéus brancos que são os de graduação mas que para um estrangeiro parecem náuticos. E divertem-se, de forma mais ou menos civilizada, com mais detalhes cuja essência e explicação me escapa – roupas, símbolos, cores especificas. O Niko decidiu procurar os seus companheiros de curso, e viajou com o seu chapéu branco. Mas eu, apesar de relativamente entusiasmado com as possibilidades fotográficas da ocasião (aliás, relativamente frustrado porque sabia que não poderia estar em dois locais ao mesmo tempo) só queria descobrir onde era o autocarro para a ilha de Seurasaari. O Niko repetia que devia ser por ali, mas não parecia nada seguro. Atravessámos o barco onde os foliões iam olhando para o céu carregado… chuviscava já… a nossa amiga sul-coreana perdeu-se, apesar de estar convencido de que fez por isso para explorar a solo. Algo que eu compreendo, dai julgar ter entendido a jogada. Por fim, o Niko diz-me: “- Olha, é ali e está lá um autocarro para partir”. Corro em sprint os 200 m e entro mesmo a tempo. Tinha comprado um bilhete para 72 horas que foi um grande negócio. Por 14 Eur tenho todos os transportes de que vou necessitar, numa cidade geralmente cara.
A meio do caminho percebo que estou a passar frente ao cemitério, e assim como assim, já que estou ali, decido inverter a ordem das visitas e saio na paragem seguinte. É de facto um cemitério enorme. Não é muito bonito, não tem a atmosfera mística dos da Europa Central, envolvidos em bosques de árvores frondosas… nem a riqueza decorativa dos grandes cemitérios italianos… mas mesmo assim há detalhes, com um sabor muito escandinavo, único. Encontro a campa de uma centenária, que faleceu aos 103 anos. Era um capricho meu, uma espécie de aposta comigo próprio, e já há muito que tentava encontrar uma campa assim… finalmente!
Ao lado dos terrenos do cemitério corre um trilho, com alguns bancos, usado por passeantes e corredores. Logo a seguir, uma superfície de água, vendo-se na margem oposta uma zona industrial. O céu continua cinzento e chuvisca. Há ali uma espécie de canavial, há patos, pássaros. Não se está mal. Percorro o cemitério até encontrar a zona militar, onde procuro uma campa muito especial: a do marechal Mannerheim, o líder da Finlândia durante os anos dificeis da Segunda Guerra Mundial. O seu papel na História sempre exerceu algum fascínio sobre mim, ao ponto de ter considerado visitar a sua casa-museu, na ilha onde também se encontra o jardim zoológico. Ora considerando o meu desamor por museus e por gastar dinheiro, ter ponderado pagar 8 Eur por este bilhete diz tudo acerca do meu interesse em Mannerheim.
A área militar do cemitério é na ponta oposta à qual eu tinha entrado. Talvez haja para ali uma paragem de autocarro, porque sei que de qualquer modo vou ter que passar por aqui. Vou espreitar. A paragem não vi, mas vi um autocarro que passou a assobiar quando me assomei no exterior. Sai. Fui andando, encontrei uma praia que, segundo li, é bastante popular no Verão. E encontrei uma escultura interessante e mais parques. E no decorrer de tudo isto, a chuva encontrou-me permanentemente. O dia está a ser interessante, sim senhora, mas a chuva está a estragar parte substancial do gozo de andar por ali a descobrir estas coisas.
Na dúvida, acabei por caminhar de volta à paragem onde me tinha apeado. Passei de novo por dentro do cemitério, descobri mais uns quantos detalhes fascinantes. Sentei-me até um pouco num dos bancos, apreciando aquele sossego. Mas tinha que gerir o tempo. Ainda queria visitar a ilha do museu etnográfico, e, mesmo considerando os longuissimos dias de Maio – fica de noite lá para as 22 horas, tinha que me pôr a andar. Mais uns volteios entre campas, e saio para a rua mesmo em frente à paragem… a tempo de ver, de novo, um autocarro passar na mecha em frente ao meu nariz. Decididamente esta carreira tem algo contra mim. Só me resta esperar, estoicamente. Felizmente de momento não chove. Aproveito para mordiscar qualquer coisa. Ainda tenho “madalenas” trazidas do LIDL em Portugal. Fiz questão de rechear a mochila com abastecimentos energéticos, leves e substanciais para o estômago. E resultou. Quando deixei a Finlândia ainda me restavam alguns víveres.
O autocarro chegou rapidamente e sem novidade à sua derradeira paragem que era aquela que me servia. Afinal era mais perto do que pensava. Atravesso a ponte que liga a pequena ilha a terra. Mais uma ou outra pessoa anda por ali. Estou a gostar. O ambiente é intimista. Cheguei a recear que, até por ser feriado, o local estive cheio de gente, mas é o oposto. Do lado de lá vou-me apercebendo de algo maravilhoso: o museu, que me custaria 8 Eur, é aquilo mesmo, e está aberto… o que está fechado são as casas, o que a mim não me aborrece muito. Saiu-me a lotaria! Vou poder ver isto tudo nas calmas, sozinho, e sem pagar. Que se lixe a chuva, que continua a cair em chuvisco. Tenho que limpar permanentemente a lente da câmara mas estou feliz. O local é lindissimo, sobretudo assim, com aquela atomosfera.
Todas as casas da “exposição” estão muito bem documentadas. Em inglês, também. Encontro algumas pessoas que passeiam por ali, mas dá-me a ideia que são locais, mesmo das imediações, que vão até ali esticar um pouco as pernas e passear os cães. Alguns, encontrando-se, detêm-se para dois dedos de conversa. Há um cheirinho de “comunidade” por ali. Vejo moinhos de vento e moinhos de água, casas de ferreiro e casas de camponeses abastados, casas mais antigas e casas mais modernas. E vejo a natureza, esplendorosa, com toda aquela água em redor. Há lagos – que parecem naturais mas são artificaisi, locais antigos de extracção de pedra ou minerais – que adicionam ainda mais valores à excelente nota que atribuo a este passeio. Descubro uma casinhota de madeira, é um pequeno clube náutico. Há restaurantes, mas creio que estão ainda fechados. Também eles em casas de madeira, dentro do ambiente.
Passo ali um bom bocado, bem mais alargado do que contava. Uso o tempo que preciso, todo ele, nas calmas, sem nada que me apresse. Quando por fim volto a atravesar a ponte de madeira, estou muito satisfeito. Sento-me na paragem à espera do autocarro. Chega. Sento-me. Mais ninguém. E agora atenção a isto que é extraordinário: todo o percurso, dali até ao centro da cidade, faço-o sozinho, como se tivesse um enorme táxi privado. Eu e o condutor. E são mais de 5 km, a maior parte dos quais por zonas centrais de Helsinquia. Isto é fabuloso. Como é que se pode desperdiçar dinheiro dos contribuintes desta forma? Sim, porque questionei o Niko sobre a situação e ele confirmou-se que só é possível porque o Estado subsidia as operadoras de transportes públicos.
Quando desco, junto à estação central de caminhos-de-ferro, vejo-o asfastar-se, o meu monstro azul sobre rodas, apenas com o condutor. Já é quase hora de jantar mas apesar do céu nebulado há ainda muita luz. E um ambiente estranho… parece uma cidade fantasma, habitada por alguns zombies embriagados. Um grupo deles discute amigavelmente (espero eu) com pancadinhas mutuas nos peitos, em frente a um café. Do outro lado da avenida, outros trepam a uma estátua de inspiração muito socialista. É interessante: durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a Finlândia foi poupada ao domínio soviético, mas, mantendo-se neutral, assim como a Áustria e a Suiça, enquanto estas sempre penderam para o lado “Ocidental”, a Finlândia foi forçada a descair para a zona de influência de Moscovo. Creio – na minha ignorância – que alguns vestígios desta época de socialismo tímido – se encontram espalhados pela cidade.
Estava cansado, mas o céu que se tornou azul parece agarrar-me às ruas da cidade. Quero ir para casa e relaxar, mas não consigo, sinto que preciso de aproveitar aquela benção de última hora. Ando um pouco pelas avenidas centrais de Helsínquia. O frio começa a apertar. Gostei de conhecer a capital finlandesa mas não fui conquistado pelo seu possível charme. Por fim, sucumbo ao cansaço…. sim, vou apanhar o comboio para casa. Há muitos, acho que de 20 em 20 minutos, e o percurso faz-se noutros 20 min. Depois, a casa do Niko fica a 200 m da estação. Quando vi a localização do meu anfitrião preocupei-me um pouco mas afinal é perfeita.
Ainda espreito a pizzaria junto à estação dos subúrbios. Tentador. Quando chego a casa peço ao Niko para me escrever num papel a pizza que quero encomendar, mas as coisas arranjam-se de forma surpreendente: ele próprio tinha acabado de passar por lá e tinha trazido uma pizza para ele. Ora que chega então a rapariga sul-coreana com um cesto de ingredientes para o Niko cozinhar as suas especialidade de comida italiana. E assim, pago-lhe a pizza e fico logo com ela.
Nossa! Helsinki é Helsinki, mas a verdadeira Finlândia está fora dela. 🙂