Livros: Appointment in Zambia

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Capa do Livro

Este fim-de-semana que passou fui apanhado por uma qualquer revolta no trato digestivo, que me valeu dois longos dias de cama e muita volta e reviravolta entre lençois. No meio da desgraça valeu-me um livro, que se aproveitou do incidente para se fazer ler em pouco mais de vinte e quatro horas: Appointment in Zambia, por Sara Dunn, revelou-se uma descoberta magnífica, de um universo já pressentido mas nunca explorado por este “cruzamundos”. Refiro-me aquela que é talvez a era de ouro da literatura de viagem, os anos 60 e 70 do século XX. Ainda há uns dias, noutras leituras, tinha passado os olhos por um apanhado pelo muito que se escreveu nessa época, e tomei algumas notas. Entre elas não havia menção a Sara Dunn, e foi quase por acaso que a sua prosa me caiu da mesa de cabeceira.

Em 1970 Ross Dunn, 25 anos, teve uma oferta de trabalho na indústria mineira da Zâmbia. Ao contrário dos seus colegas – que simplesmente voaram para Lusaka – Ross e a sua esposa Sara, de apenas 20 anos, decidiram-se, vá-se lá saber porquê, por uma audaciosa viagem por terra, ao volante de um simples carro de estrada. O livro que tive entre mãos é a narrativa desta estóica epopeia. Ao longo de pouco mais de duzentas páginas seguimos as aventuras deste casal de escoceses, desde a sua entrada no continente africano, por Algeciras, até à chegada ao complexo mineiro que será o seu lar para os próximos três anos. Pelo meio, a travessia das inóspitas paragens de Marrocos e Argélia, o desafio do Sahara, o enfrentar de todos os medos no Congo, e o acumular de riquissimas experiências, como quase sempre sucede quando viajamos fora dos bem atapetados circuitos turísticos.

Se o enquadramento temático soa bem, o conteúdo práctico não destoa. A prosa corre célere, sem problemas que lhe façam sombra. Sempre na primeira pessoa, sob a perspectiva de Sara. Só desta forma um livro deste tamanho me convenceria a lê-lo quase de um dia para o outro. É simplesmente fascinante. Sê-lo-á para a maioria das pessoas que gostam de serem transportadas para paragens distantes, mas para quem tem experiência de viagem ainda o é mais. Porque há uma percepção de como as coisas eram e como o são. Quando pensamos que cruzar a Síria em dias de guerra civil é uma proeza sobre-humana, somos reduzidos à nossa insignificância por este casal de “putos” escoceses que atravessa mil Sírias, sem GPS, sem Internet, sem telemóveis. Ao entrarem no Congo tudo o que sabem – ou pensam saber – sobre aquele país, é que da selva saiem canibais sanguinários e que, à despedida, prometeram solenemente a um angustiado concelho familiar que no Congo não entrariam mesmo. Tudo menos o Congo. Algums dias depois, ao abandonarem o país, tudo o que trazem consigo é a memória de uma imensa generosidade humana e de uma mão cheia de amigos feitos. Ao ler esses capítulos não consigo evitar traçar paralelismos. No fundo, há coisas que nunca mudam. lembrei-me das angústias incutidas por uma poderosa máquina de formação de opinião que é a chamada “comunicação social” nas vésperas da entrada na Síria. E depois, tal como Sara e Ross, a despedida comovida, os abraços sentidos aquela gente maravilhosa.

Ao virar da última página, o meu primeiro pensamento foi: “Tenho de ir ver se esta estória tem continuação. Espero que a Sara tenha escrito outro livro sobre a sua vivência em terras da Zâmbia”. Mas não. Não há mais nada de Sara Dunn para além de uma colectânea de poesia. É pena. Assim como é pena que não exista uma tradução deste livro para português. Uma leitura vivamente recomendada a todos os que apreciam descobrir novos mundos e viajar por ai.

P.S. – O livro foi lido no meu bem-amado e-reader Kobo.