Livros: Daqui Ali

daquialiEm 2011 o Pedro partiu numa viagem daquelas que, muitos anos mais tarde, se contam aos netos, à beira de uma lareira. E até lá se vão repetindo a amigos e a quem mais as quiser escutar. Quando se sai de Portugal com a intenção de atingir Singapura e regressar, sempre por terra, é inevitável: as estórias, as experiências e as lições serão abundantes. Quando se coloca tudo isso no papel, tanto melhor.

A verdade é que vivemos tempos estranhos: há cem anos, era tão complicado andar aí pelo mundo que qualquer viagem era um feito e o seu relato teria sucesso garantido. Depois, as coisas começaram a banalizar-se. Quem queria saber disso de viagens agora que tudo o que era preciso para se atravessar continentes era embarcar num jacto e passado umas horas pisar terra do outro lado do Globo? Nos dias que correm a literatura de viagens está de novo em grande… mas para ter algo digno de contar tornou-se necessário chocar. No bom sentido. É preciso fazer coisas fabulosas, como… ir e vir a Singapura por terra.

O autor vai escrevendo num estilo informal, sem escolher palavras caras, pondo no papel da mesma forma como o diria, cara a cara com o leitor. Gosto. Fez-me pensar no livro que li do montanhista João Garcia. Direito ao que interessa sem floreados, pondo logo toda a gente à vontade. Simplificando, cada parágrafo do texto enquadra-se numa destas categorias: ou é uma descrição de alguém – uma boleia, um anfitrião, um outro viajante… enfim, uma pessoa com que o autor interagiu, ou é a descrição de um local ou é o fruto de uma reflexão pessoal ou é a história de um incidente da atribulada viagem. E isto não é redutor. É mesmo assim que é andar na estrada e resulta em livro. Torna a prosa natural, desprentenciosa, fácil de ler e, sobretudo, viciante. Peguei no livro com um chá de menta num café de rua de Marrakesh, e ainda não tinha saído daquela cidade marroquina quando virei a última página. É aquilo a que os americanos chamam um “page turner“.

Pessoalmente tenho alguma dificuldade em escrever sobre Daqui Ali. E isto porque conheço o Pedro. Um tipo tem mais dificuldades em arriar num amigo, não é? De qualquer modo também não há muito de negativo para dizer. O que pontualmente me aborreceu foi uma certa postura de “sou tolerante se as opiniões e perspectivas coincidirem com a minha ou pelo menos não esbarrarem”. Sem se parar muito tempo para pensar que se estamos convictos daquilo em que acreditamos, os que estão convictos daquilo em que não acreditamos têm igual direito de estarem certos. É a intolerância ao que sentimos como intolerância. Talvez tão intolerante como a intolerância dos intolerantes.

Ainda nas notas pessoais, deu-me imenso gozo ler sobre paragens que um dia foram minhas, do Cambodja à Síria, passando pelo Vietname. Até porque o autor – retirando daqui e adicionando ali (não boleio porque tenho alguma timidez e não lido bem com a rejeição, não gosto de passar tempo com viajantes e pessoas que me tirem o foco das gentes que visito e tenho um pouco menos de medo das coisas que costumam meter medo) – tem um estilo de viagem algo similar ao meu.

Valorizo o aspecto didático do livro, o encorajamento à partida por esse mundo fora, escrito na língua de um povo que tanto precisa de sair por ai para conhecer o que há fora da caverna platónica a que está normalmente limitado. É tramado viver num pedaço remoto da Europa numa época em que Portugal deixou de se projectar para o mundo e passou a estar encafuado no canto designado. Por isso, só tenho uma coisa a dizer para terminar este texto que já vai longo: leiam Daqui Ali. Se gostam de viajar ou ler sobre elas, leiam este livro.

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