Tudo nasceu de uma inocente discussão doméstica. Afinal podia-se ou não fazer uma viagem por um preço mais económico do que o esperado? De repente passou uma coisa pela vista do Ricardo e da conversa de sofá deu consigo sozinho nos confins da Suécia, sem dinheiro, agarrado a uma projecto: provar que mais do que viajar com pouco capital, se pode fazê-lo sem verba alguma.
Para além do desafio pessoal, havia um objectivo público: passar a ideia de que a vida pode e deve ser levada com simplicidade, que com um mínimo se pode fazer muito, e que a natureza humana é melhor do que muitas vezes pensamos. Só estes pressupostos lhe permitiram ultrapassar os milhares de quilómetros que naquele dia o separavam do lar.
O livro Pé Descalço (um livro que tem um website próprio) é a narrativa das aventuras vividas ao longo dos dias em que Ricardo Frade – tal pombo largado longe de casa – necessitou para regressar. Na Suécia nevava e estava frio, muito frio, um inimigo de peso para quem se encontra naquele situação. Mas dali para a frente o clima melhorou sempre. O mesmo não se poderia dizer da atitude cultural das pessoas perante alguém que se encontrava em tal missão.
Entre átrios e arrecadações de hotéis, estações de autocarro, casas de amigos e desconhecidos, o Ricardo lá foi passando as noites. Aqui e ali conseguiu improvisar soluções para as necessidades mais prementes: comer e mover-se, sempre para Sudoeste, em direcção a Portugal. O mais difícil mas também o mais fácil passou-se em França. Foi ali que encontrou as pessoas mais intransigentes, menos preparadas para ajudar um viajante insólito. Mas foi também nos arredores de Paris que deu de caras com uma comunidade de portugueses que lhe permitiu, quase de uma assentada, terminar o percurso.
Esta é portanto uma história de sobrevivência no meio amigável que é a Europa. Para além disso é uma inspiração para todos aqueles que ainda pensam que viajar significa gastar rios de dinheiro, como o era há umas boas décadas atrás (quando, mesmo assim, alguns arranjavam alternativas). Claro que não haverá muitos candidatos a abandonar de forma tão drástica as suas muito justas áreas de conforto, mas dá que pensar… certamente existem pontos intermédios… não é preciso sair-se por aí sem dinheiro na carteira, mas também não será necessário chegar-se à primeira agência de viagens que se encontrar e largar um par de milhares de Euros para ir ali ao lado.
A prosa decorre ligeira, transformando o livro no companheiro ideal para um ou dois dias de praia. Leitura simples, sem volteios literários, histórias contadas em termos de “tu cá tu lá”. É um volume pequeno, até mais do que aparenta à primeira vista. Das 185 páginas marcadas, uma parte considerável é ocupada com a introdução, agradecimentos, considerações finais, histórias análogas, biografia, bibliografia, filmografia, epílogo.
E pela negativa? Não sei. Há-de haver alguma coisa mas não sei colocar por palavras. Deixem-me tentar… há ali algo, sobre a inexperiência de viajar, que pode ser refrescante, mas por vezes, também, desesperante. Há uma ingenuidade que a tempos escapa à esfera da falta de experiência e entra no domínio da falta de senso comum. O que não é de todo mau, nem para a pessoa que o Ricardo é, nem para o livro enquanto obra. O acesso de religiosidade que às páginas tantas ocorre, lá pelas paragens parisienses, também não me caiu no goto, mas pronto, é uma alergia pessoal (apesar de longe de ser exclusiva) que tenho em relação a estas coisas.
Em suma: um livro recomendado, especialmente nesta altura do ano, quando o Verão leva a pensar em férias e viagens, e dá mais tempo livre para leituras que geralmente se querem ligeiras. Mas não para todos. Viajantes feitos terão pouco a retirar do livro enquanto que, por outro lado, quem começa a despertar para o gosto pela vadiagem pelo mundo tem muita inspiração a retirar das páginas do Ricardo Frade.