Christiania foi o improvável ponto alto de uma visita à capital do reino da Dinamarca. Há pouco mais de quarenta anos era um quartel do exército sem guarnição. Em Setembro de 1971 a zona é invadida por um grupo de sem-abrigo. Mas rapidamente a ocupação perde o seu carácter prático e torna-se numa posição política: cria-se ali um fértil viveiro dos ideais hippies, do espírito squatter, das propostas do colectivismo e do anarquismo. Durante anos, décadas, mesmo, Christiania foi o campo de batalha entre as facções de esquerda liberal e de direita conservadora do panorama político dinamarquês. Na alternância democrática entre estas duas forças, Christiania sofreu ataques e foi defendida. Logo em 1972, beneficiando de ventos políticos de feição, a comunidade é oficialmente reconhecida como uma “experiência social”.

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A Christiania que hoje podemos visitar é o resultado de uma lenta evolução que leva já quatro décadas. Viveu muito, sofreu, desenvolveu-se. Passou por fases complicadas, por períodos de intensa repressão policial, por guerras de droga. Entretanto renovaram-se as gerações. Quando se passeia pelas áreas mais familiares de Christiania vêem-se crianças brincando por ali, e sabemos que aqueles rebentos nunca conheceram outra realidade: para o pior e para o melhor vão crescer numa comunidade onde os charros são passados com a naturalidade de quem roda uma garrafa de vinho à volta da mesa. As suas habitações não têm nada a ver com os convencionais apartamentos urbanos. São criações concebidas sob o efeito de LSD, casas bizarras, saídas de um Mundo das Maravilhas sem Alice. E a verdade é que os seus sorrisos são diferentes, transmitem uma inocência que só se pode explicar pela ausência de uma cultura de medo no seio desta micro-sociedade.

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A face mais conhecida de Christiania é a “Pusher street”, a rua onde a feira de drogas decorre. Drogas, mas leves, porque o uso de coisas pesadas é um dos poucos crimes identificado no código legislativo da comunidade. Os outros? Roubar, exercer violência, usar ou transportar armas, circulação de viaturas motorizadas privadas, comercializar fogo-de-artíficio, vestir coletes à prova de bala ou roupas associadas a gangs de “motards”. É uma espécie de centro, em redor do qual o comércio se desenvolve, não desdenhando dos proveitos que a maré diária de turistas e visitantes lhe pode oferecer. Por lá se encontram barraquinhas com os mais díspares produtos: comes e bebes, claro, mas também acessórios para o consumo de drogas leves, como cachimbos e mortalhas, e artesanato, muito artesanato.  E há oficinas de tatuagens, mecânicos de bicicletas e cafés.

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Mais longe, a área residencial. Vêem-se os velhos blocos que foram cinzentões e hoje se encontram cobertos de graffiti coloridos, construidos para albergar os militares, há muitos, muitos anos. E depois há uma área de construção intensiva, com muitas casas improvisadas, que se acotovelam entre si, numa selva urbana muito própria, com passagens estreitas que confluem numas duas ou três ruas principais. Por fim, mais afastadas, as “vivendas”. São casas erigidas à beira do lago, ao longo de um estrada de terra batida, num ambiente quase campestre. Observar estas estruturas improvisadas vale só por si uma visita a Christiania. E depois, há os pormenores. As cadeiras de ferros retorcidos, os elementos de decoração, completamente alucinados, as tralhas amontoadas sob abrigos improvisados. Os avisos cheios de humor, as bicicletas personalizadas até ao limite, algumas, senão a maioria, a denotar a loucura encapotada dos seus proprietários.

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Para se visitar Christiania tem que se estar disposto a ver coisas estranhas e a conviver com alguma fauna bizarra. Caminhar “Pusher street” abaixo e ver aquelas bancas com as barras de haxixe alinhadas, numa concorrência sadia entre vendedores, é coisa para fazer soar uma série de campainhas de alarme. As coisas não são para ser assim, desde sempre nos habituamos a associar “drogas” a algo proibido, escondido, obscuro. Aquele reportório de produtos exposto perante todos traz uma nova dimensão ao modo como percebemos o comércio de drogas leves. Recordo-me de passar por entre as mesas da esplanada pelo final da “Pusher street” e sorrir perante aquela clientela, toda muito “high”, extremamente alegre, a maioria já numa outra dimensão. Mais à frente parei defronte de um banco ocupado por uma jovem; queria orientar-me e olhar em redor, mas acabei convidado para partilhar um “charro”, assim, sem mais nem menos.

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Dizem-nos que muitos gostariam de se mudar para Christiania, mas o espaço limitado tornou essa ambição num sonho díficil de alcançar. Para se ser admitido como morador, será necessário estar-se numa relação com alguém que já pertença à comunidade. E depois, não é só usufruir. Dos habitantes de Christiania é esperado que contribuam para as actividades comunitárias, num regime de rotatividade, que faz circular por todos as tarefas mais básicas que se esperam do “Estado”, como o ensino, limitado ao nível primário, e a limpeza dos espaços públicos.

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