Se há locais mágicos, Serjilla será um deles. Esta cidade abandonada algures no norte da Síria foi um dia parte de um rede de urbes bizantinas que se estendiam por estas paragens. O declínio terá chegado, e um dia deixou de haver gentes para as habitar. As origens do descalabro nunca chegaram a ser determinadas pela legião de historiadores que abordou a questão. Mas a tese que reúne mais defensores prende-se com um declinio económico provocado pela alteração de rotas comerciais.
Mas comecemos pelo início da estória. Há um par de anos tinh avisto no canal Travel um documentário sobre a Síria, com todos os pesos pesados do turismo deste país representados: Cidade antiga de Damasco, Aleppo, Crak des Chevaliers, Palmyra e…. Serjilla. Sabem os que me conhecem que não resisto a um local abandonado, e aquelas imagens de uma cidade fantasma há muito abandonada pelos bizantinos ficaram-me na memória. Foi portanto com naturalidade que ao preparar a viagem ao Médio Oriente colocasse uma visita a Serjilla num lugar de alta prioridade. Só que a guerra civil baralhou tudo e o que era simples tornou-se complicado. O elaborado plano que incluia incursões a diversas destas cidades teve que ser colocado de lado e a poucos dias de terminar o périplo pela Síria parecia impossível ver sequer um destes locais. Mas então sucedeu um pequeno milagre: o meu anfitrião, multiplicando-se em contactos, conseguiu encontrar um taxista com coragem para nos levar não só a Serjilla mas também ao Crak des Chevaliers e a Palmira, numa odisseia de 48 horas. O preço? 150 Eur pelo seu serviço e pela gasolina. Custou a dar, com um orçamento tão apertado como sempre é o meu, mas a tentação foi mais forte, e ficou acordado que partiriamos no dia seguinte pelas 5 da madrugada.
Quando o despertador tocou logo me apercebi da catástofore eminente: o som de uma chuva forte e contínua que ameaçava arruinar o dia que tinha prometido ser o melhor da jornada. Partimos sob uma borrasca incrível e quando deixávamos Aleppo para trás a estrada mal se via, escondida por cortinas initerruptas de água. À medida que a viagem prosseguia a chuva continuava, agora mais moderada, mas ainda contínua. Atravessámos aldeias em estado de sítio, com atiradores nos telhados e carros blindados escondidos atrás de esquinas. Usámos atalhos para fugir aos postos de controle mais evidentes e vimos no asfalto os restos da Sexta-feira louca da véspera. E, quando por fim nos aproximávamos de Serjilla, a chuva abrandou claramente. Como que combinado com uma entidade superior, no momento em que o carro se deteve a abir a porta, caiu a última gota do dia. E mais do que a molha a que fui poupado, as condições climatéricas tornaram a luz perfeita para o local, sublimando o carácter místico daquela enorme área em ruínas.
Enquanto me afastava do táxi ainda ouvi o condutor dizer algo como: “- Têm quarenta e cinco minutos!”. Acenei de volta, como quem diz, “tá bem que já te atendo, deves ser é maluco”. E lá fiquei uma hora e pouco, que foi curto para respirar aquela atmosfera. Passou num instante, deixando a impressão que um dia inteiro não seria demais para explorar as ruínas e conversar com os fantasmas que nelas se escondem.
Os edíficios sucedem-se, sem telhados, mas com as grandes pedras que foram usadas na sua construção ainda nos devidos lugares. O castanho avermelhado, côr do solo que tingiu também os blocos das casas, domina a paisagem, muito bem temperado pelo cinzento das núvens baixas e pela humidade que se consegue ver no ar. Há trilhos que ligam as diversas zonas da cidade. Vejo algo que penso ser uma tumba de aspecto majestoso. E certamente todas aquelas edificações terão uma história que poderá ser contada por um guia habilitado. Mas não me importo de ficar na ignorância. Nestas coisas sou predominantemente sensorial e muito pouco racional.
É dificil acreditar que o último habitante de Serjilla partiu no século VII, quando os árabes chegaram à região, ironicamente pela mesma altura em que cruzaram o Mediterrâneo e invadiram o território que hoje é Portugal. Uma hora passa-se num instante e é hora de partir. À saída demos com um painel explicativo das ruínas de cidade esquecida (em inglês, este conjunto de cidades é conhecido por três designações: “Lost Cities”, “Dead Cities” e “Forgotten Cities”). Em tempos normais existe uma bilheteira onde se adquirem os ingressos para se ter acesso às ruinas. Mas em dias de guerra civil não há turistas e há muito que o guardião de Serjilla desistiu de permanecer no seu posto. Fica a enorme pena de não poder ver mais nenhuma das cidades perdidas e de saber que terá que se passar um longo tempo até que eu ou outro companheiro viajante consiga aqui vir em condições “normais”.
Muito bacana seu relato, Ricardo! Uma pena que esta relíquia preciosa, se sobrevivente, está hoje inacessível – pelo menos por enquanto. 🙁