27 de Março – Milão


Sabem os que leram o preâmbulo desta viagem que o papaléguas já tinha estado em Milão. Passou-se em 2009, por esta altura do ano, e as memórias trazidas da cidade não foram especialmente impressionantes. Por essa altura o tempo não ajudou. Uma chuva constante é capaz de arruinar uma viagem, e foi isso mesmo que suceder. Por isso vinha com alguma curiosidade… como seria a cidade com um céu azul decente? Bem, não muito diferente. Continuo a achar Milão uma cidade sem atractivos. Não é que tenha algo de me desgoste especialmente. A terra e o povo não são desagradáveis. Não, o problema é o inverso: não encontro nada de extraordinário nestas paragens. Talvez seja um problema de proximidade civilizacional, mas simplesmente não sinto qualquer entusiasmo em percorrer as ruas da cidade. E foi precisamente isso que fiz neste primeiro dia.

Como o passeio foi errante, tenho dificuldade em o descrever. A caminhada de casa do meu amigo Andreas para o centro consiste em cerca de quatro quilómetros, por avenidas e ruas comuns. Alguns edíficios apresentam fachadas com certo interesse. Pontualmente surgem detalhes notáveis, mas a medianidade é a nota marcante. Uma coisa foi confirmada: os milaneses fogem ao estereótipo do italiano. O estardalhaço das conversas, o gesticular frenético, o caos… tudo isso não se encontra nesta cidade. É um temperamento diferente, de gente do norte.

Depois de voltas e mais voltas, chegámos ao coração da cidade, a praça onde se ergue a enorme catedral, que por estas paragens é conhecida por “duomo”. Como sempre há um mar de gente em redor da estrutura. Há obras de manutenção ou restauro. É sempre o mesmo. Onde quer que vá as obras assombram-me. Já me conformei, e de resto não costumo dar grande importância à observação dos grandes marcos urbanos, símbolos de turismo de massas que exercem um enorme poder de repulsão sobre mim. Entrámos na galeria comercial que sai dessa praça. Chama-se Vittorio Emanuel II e é um símbolo de tudo o que é finório. E já que falo nisso… o nome de Milão é lendário no mundo da moda, mas as pessoas que vão passando na rua parecem viver de costas viradas com esse universo. Um mito que cai. O tempo das mulheres italianas arranjadas a rigor, lindas de morrer, já foi. Ou pelo menos nesta parte do país.


A galeria Vittorio Emanuel II é relativamente curta, mas os elementos decorativos junto à grande abóbada que se encontra no seu coração não deixam de impressionar. Por baixo, as melhores lojas fazem pela vida. Vem-me à mente o nome de Louis Vuton, mas, mesmo em frente, um “restaurante” Mc Donalds destoa.

A seguir ao “duomo” e à fina galeria, fomos até ao castelo Sforza, outro ícone da cidade, também ele invadido por horas de turismo instantâneo. Batemos com o nariz na porta. Eram 18:03 e encerra às 18:00. Tanto pior. Uma vista de olhos rápida terá que ficar para o dia seguinte.

Está na hora de deixar para trás a Milão dos turistas. Não muito longe erguem-se os arranha-céus da cidade. E ao lado dos que já existem, estão-se a erguer mais. A crise no sector da construção não chegou aqui. Há obras, gruas, esqueletos de torres que em breve estarão concluidas. E nos intervalos, pequenos cachos de “sem-abrigo” para os quais aquele mundo não diz nada.


A caminhada errante pelas ruas levou-nos seguidamente até um bairro antigo, de estreitas vielas, com um cantinho que me cativou especialmente. Naquela simples esquina o tempo parece ter parado. Um prédio quase devoluto abriga no seu piso térreo uma tasca que aquela hora já estava fechada. Mas focando o olhar naquele segmento, dir-se-ia termos recuado uns cinquenta anos no tempo, e dessas coisas eu gosto.

A próxima surpresa. Num largo rodeado por bancos e pelo edíficio da bolsa, uma escultura ergue-se. Quase que esfrego os olhos. Não acredito no que vejo: uma enorme mão com o famoso dedo bem erguido. A quem se destina o “the finger” é um mistério, mas decididamente é algo de bizarro, sobretudo perante a ilustre vizinhança.


A tarde já ia avançada e, dentro da monotonia que marca a cidade, já tinhamos visto muito. Aproximava-se a hora de iniciar a marcha de retorno e estávamos quase na ponta oposta de Milão. Feitas as contas, quando chegámos a casa, tinhamos caminhado 28 km. O Andrea esperáva-nos para jantar. Ainda tentámos fazer umas compras no supermercado ao virar da esquina, mas quando lá chegámos tinha encerrado há poucos minutos. Ficámo-nos portanto pela massa que o nosso anfitrião produziu com o que consegui encontrar na dispensa, e soube que nem ginjas. Depois do jantar houve ainda energia para uma vã expedição à gelataria recomendada pelo nosso amigo. Com grande frustração descobrimos que estava, também ela, encerrada. Mais umas voltas em busca de uma alternativa que não apareceu e recolhemos a casa.


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