Para hoje tínhamos uma promessa especial: o Jeff ia-nos levar, ele próprio, a Marsaxlokk, uma característica aldeia piscatória na costa sudeste. A aldeia retirou o seu nome do árabe “marsa”, que significa “porto”, a que juntou o nome dado ao vento seco e quente que sopra do Norte de África, o “xlokk”. Foi aqui que em 1565, aquando do primeiro grande ataque turco à ilha as forças invasoras desembarcaram, antes de procederem por terra para La Valeta. O mesmo fez Napoleão, em 1798, desta feita com melhores resultados para os atacantes, uma vez que acabou com o domínio da Ordem de Malta na ilha. Mais recentemente, em 1989, foi o pano de fundo para a cimeira entre os presidentes Bush e Gorbachev, que assinalou o final da Guerra Fria como a conhecemos durante décadas.
Saímos logo pela manhã. Antes de chegar à aldeia, parámos à beira da estrada, junto a uma casa abandonada onde apresentámos o Geocaching ao nosso amigo e guia, que se entusiasmou com o conceito. Explorámos depois as ruínas, onde eram ainda visíveis alguns dos elementos decorativos que outrora certamente tanta alegria trouxeram aos orgulhosos proprietários daquela casa, claramente pertencente a uma burguesia agrícola abastada.
Em Marsaxlokk deixámos o carro num lugar proibido. À volta, a multazinha municipal esperava-nos, devidamente entalada entre o limpa pára-brisas e o vidro. O nosso anfitrião não pareceu especialmente preocupado, e só mais tarde percebemos porquê… parece que o seu pai é um bom amigo do presidente da câmara local. De resto foi um dia cheio de desafios legais. No regresso, enquanto o Jeff falava animadamente ao telemóvel e conduzia o carro, um polícia numa potente mota coloca-se ao lado e faz sinal de encostar. Estou certo que qualquer um de nós, perante tal situação, atiraria imediatamente o telefone ao ar e encostaria, resignado, à multa inevitável. Mas ali não. O Jeff fez que sim com a cabeça, falou durante mais uns segundos, e então sim, parou o carro. Segundo nos contou depois, o agente terá perguntado se ele achava bem faltar-lhe assim ao respeito, continuando a falar. Ao que o nosso amigo respondeu que faltar ao respeito seria desligar o telefone na cara de com quem falava. E assim foi, sem mais. Seguimos caminho sem nenhuma consequência.
Mas voltemos a Marsaxlokk. Se gostarmos de peixe, é o local certo onde vir. O mercado, com toques de lota, é animado e extenso. Se estivermos com alguém local ou dominarmos a língua, é conversata certa com as peixeiras, sempre bem dispostas e prontas a dois dedos de conversa sobre o produto exposto. Mas não é só peixe que ali se vende. Todos os produtos mediterrânicos, directamente do pequeno produtor, estão por ali representados. Alguns carrinhos vendem doçarias locais, fritas e preparadas segundo os preceitos tradicionais, que o Jeff nos vai explicando enquanto se entusiasma com as suas próprias memórias de infância, adoçadas com estas coisas que agora partilha conosco.
O tempo nem sempre esteve brilhante durante a nossa visita a Malta, mas neste dia as condições eram perfeitas, com uma temperatura amena e um céu azul lindo de morrer. Andámos por ali, espreitando as coloridas embarcações de pesca fundeadas junto à área da feira. Designam-se “luzzus” e fazem lembrar um pouco os barcos que se vão vendo pelos portos da Ericeira, Nazaré e Olhão. Coloridos, pequenos, vulneráveis. Sentámo-nos numa esplanada, em frente à igreja local. Comemos qualquer coisa, e bebemos o refrigerante local, uma espécie de coca-cola de sabor único, maltês. Falámos de coisas sérias, do impacto da adesão de Malta à Comunidade Europeia, das alterações que se farão de forma inevitável. E nisto estava na hora de partir, que o Jeff teria que trabalhar um pouco e ia-nos deixar numa aldeia de onde poderíamos apanhar um autocarro para as chamadas “três ilhas”: Senglea, Vittoriosa e Cospicua. Que não são bem ilhas apesar de o parecerem quando se avistam a partir dos pontos elevados de La Valeta. São afinal o actor principal da imagem de marca de Malta, a fotografia típica que se tira do “upper barakka”. Antes, contudo, houve tempo para um daqueles momentos únicos de Geocaching, quando descobrimos um local idílico que nunca seria avistado noutras circunstâncias. Iamos no carro e a medo digo: “- Ò Jeff, há aqui uma outra cache não muito longe, nem sei do que se trata, queres ir ver? Achas que tens tempo?”. Tinha. E assim encontrámos a igreja de Nossa Senhora da Assunção (e respectiva cache). Foi também altura para experimentar o expoente mais elevado da hospitalidade maltesa, quando o proprietário da casa adjacente chegou, de carro, viu-nos ali, turistas, visitantes, e considerando o certo calor que se fazia sentir nos veio perguntar se desejávamos que nos trouxesse água fresca.
Infelizmente não consigo recordar o nome da localidade onde ficámos, à espera do autocarro para as “três cidades”. Mas percebemos que ainda faltava algum tempo para a próxima saída, e deambulámos um pouco, apreciando as tonalidades locais. A praça principal, tão castiça. Os prédios envolventes, com a sua o amarelo omnipresente, mas tão bem adornados com madeiras pintadas em cores garridas. Tudo estava a correr tão bem que foi com naturalidade que demos por nós a bordo do autocarro mais personalizado de todos os que conhecemos. É mesmo preciso ver a fotografia que aqui publico para entender.
Por fim nas “três cidades”, uma das partes antigas da ilha, repleta de história. Um turista tradicional terá muito que ler, vários pontos obrigatórios a visitar. Mas eu não sou um visitante típico. Prefiro cirandar de forma aleatória, descobrir por mim os recantos que se me atravessem na frente, encontrar o rumo geral e deixar nas mãos do destino aquilo que vejo. E assim foi por aqui. A qualquer momento chegávamos a locais altos, com vistas inesperadas sobre as águas… ou sobre a cidade fortaleza de La Valeta, lá, do outro lado. As surpresas sucederam-se a bom ritmo. Visitámos muralhas, becos obscuros, ruas quase privadas. Passámos defronte a palácios e museus. Estivemos no alto e em baixo. Junto à água atravessámos uma zona de lazer cheia de esplanadas e de malteses nos seus melhores “trapos”, que se passeavam numa zona obviamente social, onde as pessoas vão para ver e serem vistas. Ao fundo, onde já não se podia avançar mais, uma surpreendente concentração de Mitsubishi Evolution, com os seus orgulhosos proprietários a trocarem impressões, enquanto os acompanhantes, ufanos, apreciavam as máquinas.
Ali também, vimos embarcações que levavam e traziam turistas de La Valeta, a fazerem lembrar as gôndolas venezianas. Estava a ser um dia longo e era momento de regressar, com a incontornável escala na capital, que aproveitámos para jantar numa agradável esplanada logo abaixo do “upper barakka”, que já tinhamos marcado logo no primeiro dia. Esteve-se bem, a comer perante aquela vista deslumbrante, com uma temperatura ideal e sem um sopro de brisa. Antes, a paragem já costumeira para “beber” um pouco de Internet em frente ao Banco de Malta, onde um feroz pombo atemorizava dois espantados gatos e lhes roubava a ração que algum amigo dos felinos ali deixara.