11 de Novembro
Acordei tarde, muito tarde para uma altura do ano em que às 5 da tarde é noite cerrada. Já passava das 9 horas quando abri os olhos. Decididamente o plano diário iniciava-se com algum atraso. O Amael tinha sugerido arrancar para Salt entre as 7 e as 8. E antes disso era imperioso trocar dinheiro numa casa de câmbio honrada: no aeroporto, na véspera, o câmbio era vergonhoso, uma nódoa sobre a hospitabilidade jordana que o visitante recebe à chegada. Em vez de 0,95, como hoje de manhã, foi necessário trocar Euros a 0,84! Mas pronto. Deixemos para trás esse incidente que me azedou a entrada no país.
O dia estava solarengo e a temperatura agradável. Excelentes auspícios. Sexta-feira, que é como quem diz, dia santo para os muçulmanos, um equivalente ao nosso Domingo. A rua está calma, as lojas têm os taipais corridos. Caminhamos em direcção ao centro, que atingimos rapidamente. Por lá existe algum movimento. As lojas que vendem DVD’s pirateados estão já abertas, assim como pequenos pontos de venda de tudo e mais alguma coisa. A primeira casa de câmbio em que entro propõe-me comprar Euros a 0,95 JD. Isto já é outra conversa. Esperava um câmbio com paridade aproximada, mas soube que no dia anterior a nossa moeda caiu a pique devido à crise italiana. De qualquer modo decido tentar outra porta, quem sabe ainda consiga mais um cêntimo ou dois. Mas não. De novo a mesma cotação. Troco 200 Euros. O fulano, com o filho de uns 12 anos ao lado, convida-me para lhe tirar uma fotografia, enquanto finge contar o dinheiro que acabei de lhe passar.
Já que estamos ali, decidimos começar o primeiro dia completo desta viagem pelos vestígios romanos de Amman. O Nymphaeum encontra-se encerrado, vedado, não está aberto ao público. Já sabiamos, depois da noite passada. Mas o anfiteatro sim, espera-nos. A entrada custa 1 JD. Credo, isto é caso único. Neste país as coisas não são tão baratas. E mais, por esse dinheiro ganhamos um bilhete que dá acesso ao Museu das Tradições Populares e, normalmente, ao Museu do Folclore (temporariamente encerrado para renovação). O anfiteatro agrada-me. Não sou um especialista, não sou tão viajado que já tenha visitado muitos. Mas impressionou-me. No recinto, algumas pessoas espalham-se pelas fileiras ingremes. Alguns são turistas, outros, jordanos. Tenho a impressão que para estes últimos a entrada é gratuita. Vêem-se miúdos sentados em grupo nas linhas de pedra, e, lá em cima, alguns adolescentes fumam e bebem qualquer coisa (espero que não seja cerveja como pareceu, credo, li que consumir alcóol em público é da ofensas mais gravosas que se pode fazer, e logo num dia santo…!). Antes de escalar aqueles degraus por ali acima, entramos no museu que está disponível. Excelente! Pequeno mas muito interessante, bem iluminado, tudo legendado em inglês. Vêem vestes tradicionais e objectos de ornamentação pessoal, utensílios de cozinha e instrumentos musicais. Na cave, um corredor repleto de mosaicos retirados de igrejas, devidamente catalogados.
De volta ao exterior, subimos até ao topo, de onde se usufruem vistas espectaculares sobre a baixa, vendo-se a cidadela no morro fronteiro. Entretanto chega um grupo de turistas com um guia, que lhes conta algumas histórias e anedotas, que fazem sorrir os jordamos sentados por ali. Tempo de descer e deixar para trás um local que se recomenda.
Agora segue-se a cidadela. Do alto do anfiteatro estudámos o caminho, e começamos a subir. Os minaretes chamam para a oração e há homens a acorrer vindos de todas as direções. Recebemos uma lufada da Amman tradicional, Na encosta as pessoas são um pouco diferentes, e as ruas e edíficios estão em piores condições. Entretanto aproximamo-nos do topo, e quando começamos a pensar se existirá acesso por ali, passamos em frente a um pequeno supermercado à frente do qual uma pequenita nos diz qualquer coisa em árabe. O pai, obviamente o proprietário, sai, e traduz…. o caminho para a cidadela não é por ai… usem aqueles degraus acolá. E que valiosa dica! Não só nos nos dirigiamos para onde a estrada já não nos levava onde queriamos, como por aquele acesso entramos directamente no recinto…. acabámos de poupar 4 JD em ingressos!
O calor já aperta e a luz é fortissima. Assim que pomos um pé dentro da cidadela damos logo de caras com o templo de Hércules. A quantidade de visitantes é equilibrada. Nem o local está às moscas nem a presença de visitantes se torna incomodativa. Exploramos toda a área. Em cada face do perímetro existe um belo painel com a fotografia da linha de horizonte, marcando os pontos de interesse que se avistam. Decididamente não sou uma pessoa que nutra especial interesse por estes locais da Antiguidade. Gosto de dar uma vista de olhos, sentir o ambiente por um bocado, apreciar os detalhes mais curiosos, mas é tudo. Raramente leio as longas explicações providenciadas em guias turísticos e painéis informativos. Passamos pelas ruínas, por um museu arqueológico (a entrada está incluida no bilhete que não tinhamos; suspeito que poderiamos ter entrado, mas evito este tipo de museus como o Diabo foge da cruz). Ao longe vejo algo que é uma novidade: não fazia em ideia que em Amman se encontra a maior bandeira do mundo, com 50 metros de comprimento e 30 metros de altura. Passamos pelo que foi o antigo palácio, que não me cativa. Uma equipa espanhola liderou o restauro, mas aquilo ficou um bocado apalhaçado, com pedaços claramente novos e um telhado que não se enquadra nas dignas ruínas originais. À porta um casal de portugueses encontra um viajante do nosso país. Eles parecem trabalhar por aqui, e falam sobre uma ida à Síria.
Quando descemos de novo à cidade encontramos o mercado, ou souk, como se diz em árabe. Um maravilhoso mundo cheio de vida e cores garridas. Vendem-se frutas e vegetais, ferramentas estranhas, utensílios que nos são desconhecidos. O ambiente aqui é muito mais ligeiro do que noutros mercados deste tipo. Nem sei bem porquê. Os cheiros não serão tão intensos, as pessoas não estranharão tanto os estrangeiros ou o espaço será mais arejado.
A baixa de Amman deixou uma marca positiva na minha memória, e o engraçado é que nem sei bem explicar porquê. Durante todos os muitos dias que andei por aqui, nesta primeira fase em exploração descarada, depois, ficando na cidade entre viagens regionais, esta impressão foi-se fortalecendo. Mas deixem-me lá ver se consigo pôr isto por palavras… sei lá… é um mundo exótico que está ali diante de nós, mas contudo sem as chatices associadas a estas diferenças civilizacionais… não há putos a tentarem vender-nos tudo, nem locais a olhar para nós como se fôssemos extra-terrestres, nem truques para nos enganar a cada transação… estamos na baixa de Amman e somos integrados, podemos disfrutar sem ter que olhar por cima do ombro a cada momento. Sentimos que pertencemos ali, é um micro-mundo simples, onde nos podemos concentrar no que realmente interessa. E é cheio de vida, coisas a acontecer, pormenores a observar. De novo, de forma descontraida.
No regresso a casa há tempo para uma paragem no chamado Duke’s Diwan. Encontra-se naquilo que identifico como a “rua principal” (King Faisal street), que sai do centro e sobe por uma das muitas colinas de Amman. Alegadamente é a “townhouse” mais antiga da cidade, mas o que é certo é que foi a primeira estação de correios de Amman, logo após a escolha do que então era uma mera aldeia para capital. A casa foi construida em 1924, e pouco depois alugada pelo Governo para as funções que referi. Foi sumariamente um gabinete das Finanças, e, desde 1948, parte do hotel Haifa. Em 2001 foi a casa foi comprada pelo Duque de Mukhaibeh que desde então a mantém aberta ao público, em regime de entrada livre. Para mim, um dos pontos altos de Amman. Subir aquelas escadas que conduzem da rua até à entrada da casa foi como me fazer transportar numa máquina do tempo. No topo do lance já não me encontrava na moderna cidade de Amman, em inícios do século XXI. Não, nada disso. Tinha acabado de entrar num mundo romântico, onde Lawrence pertence… um universo das Arábias, por assim dizer. Ali imaginei intrigas de outros tempos, abastados árabes a chegar nos seus Ford T, importados da América sabe-se lá a que custos… ocidentais em viagens de negócios, suando com o calor agreste daquelas paragens…. e como é que a minha imaginação voou tão alto? Porque o bom do duque criou uma casa do mais alto nível, que não tem o nome de museu mas é o que um museu deveria sempre ser. Recheou-a de peças de mobília do passado, de forma informal, quase desorganizada. Decorou-a em conformidade. Pelas paredes aquilo são recortes de jornais, pinturas da Amman de outras décadas, retratos de gentes que já foram importantes. E, como cereja no topo do bolo, temos o anfitrião, um velho senhor que recebe os visitantes com um sorriso e uma oferta para uma chávena de chá e que explica o que queremos que seja explicado, com um perfil que faz dele uma peça viva daquele espaço mágico. A não perder!
O dia estava longe de acabar, apesar de já tanto ter sido visto e experimentado. O nosso anfitrião não tem Internet em casa e Amman não é propriamente um viveiro de redes Wi-Fi. Era necessário pôr as coisas em dia, reencontrar o mundo exterior e satisfazer os pequenos vícios que só funcionam com um teclado na ponta dos dedos. Assim partimos à descoberta da “Rainbow Street”, uma rua sofisticada, espaço natural de “expats” e jordanos muito ocidentalizados. Fisicamente seria perto do centro e de casa, mas com um desvio vertical enorme que nos levou a dar uma grande volta até a encontrar. Foi um passeio cheio de incertezas, porque não faziamos ideia de como chegar até ela, mas lá nos fomos orientando, uma vez com a ajuda expontânea de um taxista, que, descorçoado por não nos conseguir vender os seus serviços, nos ajudou mesmo assim quanto à direcção a tomar; depois, de um vendedor de castanhas assadas que, com um aspecto deplorável e suspeito se chegou até nós a falar inglês quase fluente, afastando a cautela inicial inspirada na sua pobre imagem. Sim, estávamos a ir na direcção certa, continuar a andar que logo chegariamos à Rainbow street, disse ele. E disse bem, porque assim aconteceu. Lá chegados percorrêmo-la de lés a lés, fascinados por aquele perfume de ocidentalidade num mundo árabe. Selecionámos o Caffe des Artistres como pouso. Bebi um batido de leite com tanta coisa misturada que lhes perdi a conta, mas recordo-me de frutos silvestres. Ambiente bom, Internet a funcionar plenamente, produtos de qualidade. Recomendado!
Mais tarde encontrámos o Nael e o Jazeed. E fomos ao Limana, o nosso café de Amman, que o será para sempre. Mais um hummus, e música ao vivo e conversa, e um ambiente encantador. O Limana, dá-me a ideia, é o refúgio para todos os pecados, numa sociedade liberal mas mesmo assim conservadora. Na Jordânia ninguém vai preso por quebrar os bons costumes, mas há consequências sociais. As pessoas falam. Olham. Contudo, no Limana fui vendo, ao longo dos muitos dias que lá fui, todo o tipo de infracções ao que é esperado de um jordano de bem. Casais muito jovens de mãos dadas, a sós. Mulheres que fumam narguilé…. e que dançam, abanando as ancas de forma provocadora. E por agora não me vou estender mais com o Limana, porque tantas vezes ali fui que deixarei outras impressões e experiências para posteriores textos.
Tal como no serão anterior Nael deixou-nos mais cedo, e com Jazeed fomos dar uma volta nocturna pelas ruas da baixa. Desta vez ele tinha uma surpresa para nós: conduziu-nos a uma loja de doçaria onde um enorme ajuntamento de homens se degladiava para entrar. Uma multidão! Tudo isto por causa da especialidade da casa, apresentada em enormes tabuleiros, onde um queijo semi-derretido cobre o fundo, sendo depois coberto com uma mistura doce feita com ingredientes secretos. As porções são depois cortadas, em quadradinhos que são servidas aos ansiosos clientes. Jazeed diz-nos para esperarmos cá fora e volta pouco depois com os nossos doces. Delicioso… mas MUITO pesado no estômago.
Dormimos a segunda noite em casa do Nael.