20 de Novembro

Na véspera, uma tarefa que se adivinhava espinhosa acabou por ser mais simples do que o esperado: convencer o cabeçudo e apressado do nosso motorista a sairmos apenas ao meio-dia. Já tinhamos percebido que a intenção dele era pôr-se a andar pelas 10 horas. Fora de questão. Assim, com o recepcionista do hotel no papel de intérpetre, apresentámos as nossas condições, com poucas esperanças que fossem aprovadas sem grande luta. Mas afinal foi isso que aconteceu. Ao meio-dia? Ok. Pronto. Não se fala mais nisso.

Quis acordar com o sol para aproveitar aquelas horas de Palmyra. Quando cheguei às primeiras ruínas, logo em frente ao hotel, ainda as sombras se estendiam. De novo, ninguém à vista. Foi tempo de calcorrear os arruamentos construidos há milhares de anos, posar na escadaria onde a rainha Zenobia é representada nas pinturas glorificadoras da grandeza da Síria, ao lado de Saladino e de outras figuras associadas ao poder da cultura local.

Ainda se pensou em ir lá acima, ao castelo árabe, que domina o vale onde a antiga cidade de Palmyra foi erigida, mas a subida ingreme que se avizinhava e a gestão do tempo acabaram por nos fazer colocar de lado essa ideia. Mas aventurámo-nos pelas colinas que antecipam essa, maior, onde a fortaleza se encontra, e com isso fomos premiados com uma assombrosa perspectiva geral da grandeza de Palmyra.


Um dos elementos que mais me impressionou foi o complexo de tumbas que se estende a perder de vista. São pequenas torres, que parecem não ter uma relação civilizacional com a cidade que se encontra nas nossas costas, mais semelhante com uma metropolis romana. Depois, ao apanhar no mesmo enquadramento alguns traços da cidade, as tumbas e o castelo árabe, a imagem fica completa. Parecem três mundos distintos, colocados no mesmo local através de artes mágicas.

Lá em cima o sol brilha. É o primeiro dia na Síria onde usufruimos de tempo quase perfeito. E, ironicamente, é também o último dia no país. Custa a acreditar que se passou quase uma semana. Que depois de amanhã, se tudo correr bem, dormiremos já na Jordânia.

Entretanto chegou a hora de nos despedirmos de Palmyra. Ainda falta um bom bocado para a partida, mas basicamente já nos deliciámos na conta certa com este local avassalador. Tivemos ainda tempo de rondar o templo de Bal, um dos cinco pontos cujo acesso é pago, e de meter o nariz no edíficio que foi antes o museu etnográfico, cujas colecções foram entretanto transferidas para o museu principal. Este forte vindo de um filme à Lawrence da Arabia foi usado pelos franceses como prisão, e hoje é o centro de visitantes. Um nome algo pomposo, porque não existe nada lá. As salas estão vazias, despidas do património que migrou para o museu maior, e o recepcionista não se preocupou muito com a nossa entrada nas instalações. Fica a referência para uma emergência: trata-se de um bom local para usar uma casa de banho pública e gratuita.

Nesta manhã em Palmyra fomos assediados por duas pessoas decididas a fazer algum dinheiro conosco. Quando trepávamos as colinas, veio até nós um habitante local, de motocicleta, convidando-nos para um chá em sua casa. Não foi feita menção a negócio, mas infelizmente a hospitalidade desinteressada que é uma característica síria parece ter-se já perdido em Palmyra. Depois, saido de um casebre construido encostado à periferia da cidade antiga, saiu um homem cheio de sorrisos e boas falas, que nos abordou com a gentileza habitual, enquanto gesticulava para que a mulher se apressasse com o mostruário. Conseguimos afastar-nos antes da chegada da pilha de lenços e tapetes.

Mas é preciso assinalar a diferença que a crise política na Síria e o consequentemente afastamento de turistas teve na experiência de uma visita a Palmyra. Li que em tempos normais o assédio a que o visitante era submetido roçava o escandaloso, com enxames de vendedores de lenços e tapetes, de gente oferecendo passeios de camelo, serviços de guia e tudo o mais o que pudesse vagamente ser vendável a um turista. O templo de Bal seria o epicentro deste frenesim, mas das duas vezes que lá passámos, não vimos vivalma. Sem turistas a horda de vendedores afastou-se, teve que procurar outras actividades.


Chegámos ao hotel com uma boa margem de tempo para uma partida descontraída. Foi tempo de ir lá acima buscar as mochilas, retornar à recepção, almoçar um bom humus e pagar. Eram cerca das 11 e 30 quando nos fizémos à estrada.

A viagem até Aleppo decorreu sem incidentes. Logo à saída de Palmyra, o primeiro “checkpoint”. O polícia que se aproximou do carro estende-me a mão para um bom aperto. A mão é uma forma de dizer, porque o homem tinha uma pata digna de urso. Se lhe apetecesse dar-me um chapadão, era um vôo de alguns metros garantidos. Mas não havia razões para isso. Como quase todos os outros que nos foram abordando nestas andanças, ficou encantado por ter por ali estrangeiros, e ainda por cima de Portugal. Não quis saber dos passaportes para nada. Apenas dois dedos de conversa e boa viagem.

A rotina repetiu-se algumas vezes. Com o sol a brilhar a presença militar tornou-se mais visivel. De novo os blindados BMP-1, os atiradores nos telhados, as posições de prevenção em múltiplos pontos à beira da estrada, o controle apertado à entrada de cada aldeia… e colunas militares, em trânsito. Mas tudo isto, para nós, não passava de aparato. A única interacção eram mesmo as verificações, que nos pararam 3 ou 4 vezes até chegarmos a Aleppo.

Pagámos ao condutor e entrámos no hotel. Foi como regressar a casa. O Ahmed pareceu genuinamente feliz de nos ver regressar, como se tivéssemos outra hipótese. E o mesmo sucedeu com o empregado arménio que o ajuda a manter o estabelecimento em funcionamento. Seriam umas 5 quando chegámos, e havia algum tempo para repousar antes da festa dessa noite.

À hora combinada chegámos à recepção e já estava cheia de gente. Quase todos já nossos conhecidos, como que velhos amigos. Uma das novidades era um casal ocidental, que o Ahmed, por assim dizer, recolheu das ruas. Estes holandeses estavam a caminho da África do Sul, por terra. Andavam a “vaguear” por Aleppo e o nosso amigo meteu conversa com eles, como faz com todos os poucos forasteiros que por aqui vão aparecendo.


Tempo de embarcar e partir para o restaurante-discoteca onde a festa terá lugar. Para a ocasião temos um mini-bus só para nós, quase literalmente, porque com tanto carros particulares apenas o Gary partilha esta viatura conosco. Quando chegamos o ambiente é constrangedor. Apenas nós nos encontramos na enorme sala, e sentamo-nos numa mesa corrida. Os vizinhos do lado falam mal inglês mas ficam deliciados com a minha nacionalidade, como sempre sucedeu na Síria. Mais tarde, com o correr do alcóol, as inibições com a linguagem começam a cair e a conversa torna-se mais interessante. Mas infelizmente temos que sair quando a festa começa efectivamente a animar. O enorme salão já está quase cheio, e os locais começam a animar o ambiente, dançando na pista. Despedimo-nos destes bons amigos. No dia seguinte a partida para Damasco é bem cedo. Os rapazes que estavam ao meu lado levam-nos ao hotel. Claro. Como sempre sucedeu na Síria, nunca nos deixaram encontrar o caminho para casa sozinhos.

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