25 de Novembro
O acordar foi tranquilo, depois de uma noite passada no mais profundo dos silêncios que alguma vez “escutei”. Das tendas em redor surgiram os nossos companheiros de acampamento. Aproximava-se a hora marcada para o pequeno-almoço, que ia sendo preparado pelo nosso guia. Foi uma refeição excelente, uma extensão do jantar da véspera, com excelente variedade de alimentos em cima da mesa, num misto entre tradicionalidade e ocidentalidade. E a companhia revelou-se tão agradável como tinha sido no serão anterior.
Estava na hora de partir. Todos no nosso jipe, em direcção a Wadi Rum. Vimos alguns camelos deixados à solta no deserto e as primeiras viaturas que faziam o percurso inverso ao nosso. Do louco que ontem corria semi-nu pelas areias dos arredores da aldeia, nem sinal. O nosso carro aguardava, no terreno anexo à casa de Mohammad, a quem pagámos, expressando a satisfação pelos serviços prestados.
Antes de nos fazermos à estrada queria ainda explorar um pouco daquela zona. Já depois de sairmos dos terrenos do parque, andámos um pouco por uma estrada asfaltada, mas muito secundária. O carro foi deixado no ponto onde um espesso manto de areia cortava o piso firme. Eram apenas 3 ou 4 metros de largura, mas não quis arriscar. Andámos umas centenas de metros, subimos a uma pequena colina. O sol levantava-se e uma certa neblina que pairava a levante conferia uma atmosfera especial ao cenário. Foi uma espécie de despedida intimista do deserto de Wadi Rum, um acto simbólico, uma excelente forma de virar aquela página das nossas viagens pelo Médio Oriente.
De regresso ao carro encontrámos um beduíno que por ali passava na sua viatura todo-o-terreno. Como não podia deixar de ser, deteve-se para perguntar se estava tudo bem, se era preciso ajuda ou direcções. Não era, e seguiu viagem. Um susto: o nosso Hyundai recusava-se a pegar. Aliás, nem motor de arranque. Morto. Felizmente que o problema era de simples resolução: mau contacto nos bornes da bateria, resolvido com um abanão dos cabos. Mais um elemento para a lista deste pedaço de lixo: não só consumia gasolina como se fosse um carro de alta cilindrada, como o travão de mão era quase inútil, vibrava por todo o lado, o manípulo de abertura do vidro recusava-se a ficar na porta, e o painel do porta-luvas abria-se a cada ressalto… agora e até ao fim passou a recusar-se a dar sinal de energia eléctrica em quase metade das situações em que activava a ignição.
Ainda houve oportunidade para dar boleia a uma jovem belga e ao seu companheiro beduíno que iam para Aqaba, onde estavam acampados com os amigos. Deixei-os na estrada principal, a tal “auto-estrada do deserto”, que de resto acompanhei durante certo tempo, até apanhar o desvio para Petra e para uma outra via carismática, a “estrada do rei”. Falei em Petra, mas não espere o leitor relatos de uma visita ao local mais visitado da Jordânia. O custo do bilhete é de 50 Eur, e eu não pago 50 Eur por bilhete algum a não ser por aqueles que me levam de um lado para o outro, sobre as núvens. 50 Eur foi o que me custou uma viagem às Canárias, incluindo 6 vôos da Ryanair. Nem pensar em passar para a mão do Governo Jordano a mesma quantia para absolutamente nada e por absolutamente razão nenhuma. Petra foi construída pelos Nabateus e não reconheço autoridade aos jordanos para decidirem cobrar uma taxa astronómica a quem queira ver o trabalho de um outro povo que calhou habitar nas terras agora controladas por eles. Não me interessa quão espectacular poderá ser, apesar de ter muitas dúvidas, e isto já é uma coisa pessoal, de que conseguisse desfrutar alguma coisa num banho de multidão de turistas que sempre envolve aquela cidade da Antiguidade.
Passámos Wadi Musa, a aldeia tornada cidade que suporta a indústria de turismo de Petra. É a terra do nosso bom amigo Yazed. E como a última vez que lhe telefonei ele me disse que estava em Petra, mandei-lhe um SMS. Afinal se iamos passar à sua porta faria todo o sentido dar-lhe um abraço. Mas não tive resposta. Foi muito mais tarde, já a chegar a Amman, que recebi o seu telefonema: que se estávamos em Petra que não nos preocupássemos com nada que ele estava de regresso a Amman mas já tinha arranjado as coisas para ficarmos em casa de um amigo. Hospitalidade.
Portanto, na falta de Petra, ficámo-nos pela Petra dos Pobres, a “Pequena Petra”. No fundo é um modelo da famosa. Numa pequena área e com pequenas fachadas. Mas é de borla e ninguém vai lá. Tinha até lido alguns relatos sobre gente “esquisita” que andaria por lá, e talvez por isso fui encontrar uma carrinha da polícia estacionada em modo permanente frente ao parque de estacionamento. E pronto, não há assim muito a dizer. Entra-se por uma garganta rochosa que dá acesso ao desfiladeiro onde as casas e monumentos foram escavados na rocha pelos nabateus. Existem dois que se disntiguem dos demais, mais impressionantes, e depois muitas cavernas menores, que eram ligadas por um sistema de escadas. As que foram talhadas na pedra ainda lá estão, as outras, provavelmente de madeira, desvaneceram-se com o tempo, deixando uma série de plataformas isoladas.
No fim do “canyon” que não terá mais de uns 400 metros, existe uma passagem discreta, que parece barrada, mas não está. É a subir, implica alguns malabarismos mas impõe-se passar. No topo, depois de passar por um café surreal, com duas mesas e exposição de “souvenirs” que deverá ter um cliente em cada dois meses, chega-se um local encantado. É como que um portal para um universo fantásticos. Não ficaria espantado de avistasse um dinossauro aparecer-me diante dos olhos. O vale que se estende por ali parece completamente isolado do mundo.
O dia hoje manteve-se basicamente encoberto, mas as montanhas que antecederam Petra estavam verdadeiramente no meio das nuvens, e, naquele momento, pensei mesmo qua ia cair alguma chuva. Mas o tempo aguentou-se e pudemos fazermo-nos à estrada a seco.
O próximo evento desta viagem foi inesperado. Não estava nos planos visitar o castelo de Shobak. Aliás, estava, mas já um bocado farto de ver mais do mesmo tinha removido este local da lista de coisas a visitar, mas olhem, estávamos a passar mesmo ali ao pé, e um enorme cartaz à beira da estrada apontava a direcção para este baluarte cristão, construido pelos cruzados no início do século XII. Mais interessante do que o castelo é a paisagem circundante, de colinas nuas, pontilhadas por pequenos arbustos, arredondadas, enormes. Um cenário quase extra-terrestres, que se observa das ameias. Uma equipa de jovens arqueólogas italianas desenvolvia uma qualquer actividade. Éramos practicamente os únicos visitantes.
As nuvens mantinham um tom de tristeza neste dia. Apanhámos novamente a “auto-estrada do deserto”, que já se tinha tornado uma velha amiga. Desta vez vinha com olhar atento, decidido a ver uma fortaleza à beira da estrada que já por duas vezes me tinha chamado a atenção, como que a chamar-me para uma visita que lhe quebrasse a solidão que é recordar apenas na companhia do pontual pastor os seus tempos de glória, quando viajantes de todo o mundo conhecido ali pernoitavam a caminho da peregrinação de uma vida, em direcção a Meca. E de facto avistei-a, ainda a uma certa distância. Mas passámos por ela e nada de possibilidade de passar a faixa de rodagem oposta. E mais umas centenas de metros e ainda nada. À nossa frente um carro de polícia faz sinal de viragem… pronto… se eles vão virar estamos safos, significa que ali à frente há possibilidade de inversão de marcha. Mas… ooops… os malvados inverteram num acesso com um enorme sinal a proibir essa manobra. Olha, pois se é assim, sigamo-los. E assim foi, num instante estava junto ao tal forte, de seu nome al-Qataneh.
Uma estradinha leva lá direito, é um paraíso para o turista condutor, com amplo espaço de estacionamento e ninguém à vista. A porta está aberta, o que é uma sorte: li que usualmente se encontra trancada e na melhor das hipóteses o zelador surge, merecendo depois uma gorjeta. Mas neste fim de tarde, com o sol já muito baixo, apenas um rebanho de cabras a umas centenas de metros nos observava. E o forte… faz-se magia… nunm instante quase 40 anos de tempo são rebobinados e volto a ter 12 anos, e estou a brincar com um forte da Airfix, onde alinho soldadinhos de plástico da legião estrangeira, que disparam as suas armas imaginárias contra hordas de beduínos atacantes. E aquele o “meu” forte Airfix, que tantas horas de brincadeira me preencheu. A sério! Estou convencido que foi em al-Qataneh que os “designers” da empresa britânica de modelismo se inspiraram para conceber aquele artigo que se comercializava nos anos 70. Imaginam a minha euforia, a pisar com os meus pés aqueles recantos, como se tivesse entrado no mundo dos brinquedos, numa espécie de Toy Story privada?
Chegou o momento em que tive que regressar ao mundo real, até porque o sol estava quase a pôr-se. O resto do caminho fez-se sem problemas. Com a ajuda do GPS e da sinalização razoável das estradas jordanas encontrámos o caminho correcto até casa. Nessa noite jantámos com o Mohammad, não o guia de Wadi Rum mas o nosso novo amigo em Amman. Fomos ao café defronte do nosso grandioso Limana. Gostei, também. Talvez mais popular, sem nenhum estrangeiro à vista na casa cheia. Minto… agora que penso melhor recordo-me que vi uns ocidentais por lá, mas mesmo assim, não o suficiente para se tornarem significativos.
Belíssimas paisagens encontramos nesta terra de areias vermelhas 🙂 que saudades! Concordo que é exorbitante o preço da entrada em petra!!! Tive a “sorte” de visitá-la na véspera do último aumento de preço… pagámos “apenas” 33 euros. Mas o povo jordano aproveita-se muito e foi uma desilusão. É preciso ter uma certa capacidade de abstracção! 🙂
Descobri hoje este blog e devo dizer que estou maravilhada! Obrigada pela partilha e parabéns pelas fotografias que são muito muito especiais. Trazem-me belas recordações de alguns sítios onde estive e dão vontade de pegar na mochila e sair para conhecer os outros.
Continuo a ler as crónicas com muito interesse e entusiasmo!
Obrigado pela partilha destas experiência com que muitos só ousam sonhar (eu incluído).
E por falar em ousadia, adorei a foto wadirum-04, e ficaria optima no meu desktop, não a queres partilhar numa maior definição?