Aterrámos em Istambul ao fim do dia. Uma viagem simples, feita de dois voos, o primeiro entre Lisboa e Madrid, com mudança rápida para um outro Iberia para a Turquia. Piso terrenos familiares, não há muito para descobrir. Desta vez o visto é tratado online, pode-se proceder directamente para o controle de passaportes.
Cá fora, procurar o autocarro da Havas que liga os aeroportos de Istambul ao centro da cidade. Num instante estamos a rolar no caótico trânsito. Reconheço alguns dos locais, outros são-me desconhecidos. E nisto desembocamos mesmo junto ao destino, perto da fulcral praça Taksim.
Comprar bilhetes para o metro, andar duas estações e esperar pelo Emre. É sempre bom rever um velho amigo, alguém com quem tantas experiências foram vividas. O Emre foi um dos meus companheiros em Praga e depois disso passei umas semanas com ele em Istambul há dois anos.
Chegámos à nova casa dele. Entretanto casou, mudou-se. Instalamo-nos, jantamos juntos lá em casa. O primeiro dia da aventura, o regresso à bem-amada Istambul.
No segundo dia foi altura de rever locais, refazer trajectos, reviver as grandes memórias dos dias de Istambul. Como eu gosto de cruzar aquelas ruas, de sentir a fusão de mundos que se verifica apenas em Istanbul.
Cruzar o Bósforo é algo que poderei fazer vezes sem conta sem nunca me cansar. Há sempre algo a observar, copinho de chá na mão, cabeça a menear para um lado e para o outro: são os passageiros, sempre tão interessantes, e os outros barcos, a infinidade de embarcações que sulcam aquelas águas. E o que se vê em terra, menos dinâmico mas mesmo assim com uma surpresa nova todos os dias.
Não, a sério, só de pensar em Istambul sinto saudade. Mesmo se não fazem ainda três semanas desde que a deixei para trás pela segunda vez. Um dia pode ser diferente, mas hoje sinto que quero regressar vezes sem conta. Como não acarinhar os traços que ficam daqueles passeios pelas ruas ingremes de Beyoglu, a vista de casas centenárias construidas em madeira que vai resistindo ao tempo como pode… ?
Hoje atravessámos para Uskudar e a diferença sente-se logo: a maioria das mulheres usa lenço na cabeça, chegámos à Ásia, a Europa a 10 minutos de barco. Que belo passeio se faz, sempre junto à água, até chegarmos defronte à ilha com a casa da torre. É um dia como qualquer outro mas aquele trecho está pejado de gente que usufrui da sua vida em Istanbul. Moças de hijabs coloridos conversam sentadas nas rochas. Bebe-se chá nas escadarias.
E prosseguimos até chegar a Heydarpasa, a grandiosa estação de caminhos-de-ferro que fez parte de um sonho maior, nunca concretizado, que passava pela construção de um eixo ferroviário até às terras da Arábia. Um projecto com um toque europeu, patrocinado por uma Alemanha que no início do século XX procurava já o melhor acesso ao ouro negro.
Gosto sempre de Heydarpassa, mas neste final de tarde não estava no seu melhor. Vejo que no interior da estação removeram os clássicos bancos de madeira e encheram o hall principal com uma peça de arte monstruosa (em tamanho, sem dúvida, e em estética, provavelmente); o cafezinho de rua estava já fechado e, enfim, não era esta a memória que guardava de um dos meus locais favoritos da cidade.
O segundo dia completo em Istanbul começou com o regresso ao meu museu. Rahmi Koç. Adoro. É o meu Louvre, um dos locais mais mágicos que conheço. Receei que numa segunda visita já me aborrecesse, mas não. Claro que não teve aquele impacto da primeira, perdido o factor surpresa, mas foi tempo e dinheiro bem gasto.
Cruzámos para a outra margem, com destino a Ayup e Pierre Lotti. A colina do cemitério subiu-se bem depois de uma breve visita à mesquita sagrada e lá em cima descobri um charme renovado: não tinha gostado especialmente da primeira passagem por aqui, um dia com muita gente, o local perdia o encanto. Hoje foi diferente. E descobri que mais acima existem mais esplanadas, sendo que a última tem melhor vista e é muito mais sossegada. Um local que passará a ser de eleição para mim em próximas visitas.
A pé até Balat, um bairro tão especial, castiço, uma espécie de Alfama de Istambul, mas ainda num estado totalmente genuíno. Perco-me por ali, naquele labirinto de ruelas, umas para baixo, outras para cima. A criançada que joga a bola, os homens que regressam a casa depois de um dia de trabalho. As mulheres que vão a algum lado. E vejo que na rua principal, que corre em baixo, ao nível da água, há cafés modernos, há juventude sofisticada, sinais dos tempos.
No dia seguinte o Emre a e Mine não trabalhavam. Seria Sábado. E fomos passear os quatro, um passeio de ócio, como só numa grande cidade com bom clima se faz. Fomos tomar o pequeno-almoço. Mas não um pequeno-almoço qualquer. Fomos longe, onde Istanbul já se funde com a natureza, Bósforo acima, a um local conhecido dos nossos amigos. Ali, dizem, são servidos os melhores pequeno-almoços turcos, que é uma experiência única. É uma mesa cheia de pratos com os mais variados petiscos, salgados e doces, que se degustam calmamente, actividade ideal para uma manhã preguiçosa de fim-de-semana. Sobretudo ali, com uma vista divinal para o Bósforo. Nunca tinha comido assim, e, se tudo correr bem, não terá sido a última vez que tomo um pequeno-almoço destes. Está marcado!
O chá é servido à vontade, assim como o pão. O Emre tinha-me dito que era impossível acabar com a comida servida. Talvez. Mas estive perto. Resultado: indisposição gástrica ligeira, o castigo da gula.
Felizmente que após o repasto os nossos amigos tinham algo para esticar as pernas, um passeio pelo parque onde o seu casamento se celebrou, há cerca de um ano. No regresso o trânsito adensa-se. Eles iam-nos dar boleia até Ortakoy, um ponto muito fotogénico junto à água, que não pude visitar convenientemente quando por lá passei em 2013 devido às obras que decorriam. Mas a passo de caracol ainda o sol há-de se pôr e não chegamos. Faltam uns 2 km, despedimo-nos e vamos a pé. É mais um momento memorável, naquele pedacinho de tarde, estar no meio de uma pequena multidão que aprecia o seu tempo de lazer.
O Domingo apareceu chuvoso. O tempo não tinha estado do melhor, mas neste dia a chuva caía sem parar. Não fosse o encontro marcado com o amigo Mateus Brandão, que após uma tour com um grupo tinha esta tarde dominical livre, certamente teriamos ficado em casa. Acabou por ser um belo dia… entre aguaceiros e pausas, bebemos um belo chá numa tasquinha gerida por adolescentes nos confins de Balat e calcorreamos aquelas ruas, descobrindo novos recantos antes de a noite cair e se fazerem horas de despedida.
O dia seguinte foi tão bom. Descobri partes de Istambul que me eram desconhecidas, subindo para Fatih, onde o ambiente, apesar de se estar na parte mais central da grande cidade, é de aldeia. Fomos até à grande mesquita deste bairro, que se vê lá de baixo. Depois fomos às partes mais turísticas, de passagem, só para um cheirinho – e estou a falar da zona da Mesquita Azul e da Hagja Sophia – decepcionei-me um pouco por ver que uma das ruas mais belas da cidade estava completamente em obras e acabámos por descer ao Ponto de Seraglio, o passeio junto ao Bósforo, na base do grande palácio.
Ali vêem-se sempre grandes figurões; a jogar, em ousados fatos de banho, sobre as rochas, como Zezés Camarinhas de Portimão, poetas absorvidos, amigos na pescaria. E depois fomos à desforra a Heydarpasa, desta vez sim, com o cházinho da ordem na pacata esplanada do café.
Para terminar em grande, um passeio pelo Golden Horn acima, em busca do local mais castiço para comer a popular sandes de peixe frito, e não podíamos ter tido mais sorte na tasca flutuante que encontrámos. Foi mesmo uma Segunda-feira em cheio!
E pronto. Viver Istambul é assim. Os dias passam tão rápido… chegaram ao fim num segundo. Hoje já vamos dormir ao aeroporto, o meu familiar Gockcen, que ainda considero o melhor para passar uma noite fora. Cedinho, pelas 5:50, há o avião para o Chipre.