Dormi bastante melhor hoje, uma noite inteira sem interrupções, oito horas de sono, um luxo. O pequeno-almoço aguarda-me, mas não o aguardo com grande entusiasmo. Não é mau, mas não é bem ao gosto lusitano. Saladas e pratos quentes não é a minha ideia de pequeno-almoço e para a minha dieta matinal, apenas yogurte com mel. Em pacotinhos. O que me faz comichão. A contribuição iraniana para a poluição com plástico é imensa. Pacotinhos de manteiga, de compota, de queijo-creme. Copos de plástico. Então chá e yogurte… comido em chávena de chá para não criar mais desperdicio plástico.
O Tobias está de saída. Vai à mesquita dos vitrais, e vai em boa hora porque – coisa rara desde a véspera, o sol brilha. Como na companhia do Pedro. Nas calmas, com muita preguiça. Saboreio os últimos momentos neste hostel onde fui feliz.
Vamos dar uma volta, até ao bazar. Quando saímos o tráfego já é muito intenso. O Pedro precisa de trocar dinheiro, vamos lá de caminho. Sucesso. E troco 50 Eur em notas mais pequenas, para ter a certeza que não tenho problemas mais tarde, ao pagar o táxi em Teerão, para o aeroporto.
O bazar eu já conhecia, a expedição é mais para o meu amigo, que também não vibra especialmente. Como eu sente que ao fim de duas semanas no Irão isto é bazar mais bazar, mesquita mais mesquita. Acabamos por nos sentar a beber um chá no cafézinho que tinha descoberto num pátio. Um momento alto, muito agradável. Começa a pingar. E depois a chover mais e mais. Os bazaris correm com tapetes que salvam da água que cai do céu.
Aguardamos, acabando tranquilamente o chá. Mas a chuva não dá sinais de parar e o Pedro tem de começar a pensar em ir embora. Temos que ir. E ao sair do bazar decidimos apanhar um táxi, para o hotel, mesmo ali ao lado. A brincadeira sai-nos caro, mas é um caro de brincadeira. O preço normal seria uns 30.000 Rials mas o tipo quer 70.000 Rials. Que se lixe, está a chover! É menos de 1 Eur a cada um.
No hotel vou embalar a mochila nas calmas. Tenho muito tempo ainda para fazer o check-out. Muito devagar. O Pedro diz que tem que ir para cima. Já lá vou ter. Aproveito para pagar também a minha conta. Um até breve ao meu amigo. E vou para baixo, tomar um duche bem quente. Em câmara lenta. Quero saborear os últimos instantes no Nyaesh Boutique Hotel. Que nem é Boutique nem é Hotel, mas é muito simpático. Sento-me a apertar as botas nos degraus do dorm e sinto um vazio… faz dó ver aquilo vazio, as camas feitas, preparadas para quem se seguir, mas para já tudo deserto. O tempo cinzento acentua a tristeza do momento.
Não me apaixonei pelo Irão, mas aqueles últimos dias em Shiraz foram muito agradáveis. E agora, ver aquilo assim, silencioso, com a memória da noite em que cheguei, o Luis, naquela cama em frente à minha, o Pedro, mesmo ao lado. O Tobias e a belga no salão do lado… uma saudade bizarra, uma saudade velha de apenas dois dias. Bem, está na hora, um último olhar, uma última fotografia e viro as costas aquele dorm.
Sento-me perto do Tobias, aguardando o telefonema da moça iraniana que se ofereceu para me ajudar a encontrar o autocarro certo para vir para a estação de comboios. Como combinado liga pouco antes do meio-dia. Combinamos para dali a quinze minutos, à porta do castelo. Despeço-me do Tobias, com quem apesar de tudo não senti uma ligação tão boa como com os outros membros do “gang” do Nyaesh.
Encontro a amiga que me leva a comer uma sobremesa tradicional de Shiraz no bazar. São uma espécie de noodles mergulhados numa calda doce de sabor a limão, resultando muito bem. Depois voltamos ao cafezinho onde estive de manhã, desta vez sou eu que inesperadamente lhe sirvo de guia. Ficamos por lá à conversa durante um par de horas.
Leva-me então ao autocarro, explica a situação ao motorista, simpático, que sorri, faz-me um sinal para não me preocupar. Estou bem entregue. Nem me deixa pagar bilhete. Toda a gente a bordo do autocarro me olha como se fosse um homenzinho verde com antenas enquanto me sento.
O telefone toca. É a minha nova amiga a dizer que está sentada atrás de mim… lembrou-se que tem que fazer uma coisa e aquele autocarro serve-lhe. Vai atrás porque é mulher, e as mulheres tem que se sentar na segunda metade do autocarro, à parte dos varões. Quando mais à frente sai, o motorista diz-lhe qualquer coisa que ela me retransmite: para não pagar mais de 10.000 ao taxista quando me for indicado para sair… ora isso são 0,25 Eur.
É uma longa travessia, no total uns 16 km. Quando se aproxima a hora de sair, mesmo antes do “capitão” me fazer sinal, logo outro me pergunta se vou para a “train station”, que é ali que devo sair enquanto outros fazem gestos de concordância. O motorista vê-me quando se levanta para me chamar, e de repente toda a gente quer ser o meu guia nesta tarefa de transitar do autocarro para um táxi. Na realidade, estivesse eu anónimo, caminhava. É menos de 1,5 km. Mas pelo que custa também não vou gerar confusão. O tipo do autocarro grita para os homens que entretanto já saíram, dá-lhes a missão de se certificarem que fico entregue a a caminho da estação.
Agora estou na rua, o autocarro arranca, e tenho quatro ou cinco homens a discutirem com um taxista, que se faz rogado, diz que é um serviço de caca, que para ir ali ao lado prefere ficar quieto, e os outros dizem-lhe para ter vergonha, que é um estrangeiro que precisa de chegar à estação, que vá lá, se deixe de parvoeiras. Ele lá faz uma concessão. Então vá, mas por 20.000 Rials. Os voluntários que tomam conta de mim fazem um esgar de desespero, que vergonha, transmitem-me a proposta a medo. Todos ficam aliviados quando concordo com a tarifa que eles sabem ser abusiva. Na boa. Parto de imediato, de novo o taxista é um porreiro, boa onda, até lhe dou uma pequena gorjeta para facilitar o troco.
Por alguma razão os iranianos levam os comboios muito a sério. Aquilo é como embarcar num avião. Verificação de bagagem, de passaporte, de bilhete. Depois o bilhete vai a carimbar num gabinete ao lado e por fim sou autorizado a entrar no terminal. É amplo, enorme, novo em folha. Até nisto a experiência se assemelha a uma viagem de avião. Descubro, com enorme espanto, que existe Wi-Fi gratuito e aberto. E fichas elétricas. E mesas. O tempo assim passa num instante e vou-me entretanto no computador enquanto o terminal enche. De novo tal como num voo, 40 min antes da partida, abrem-se as portas de embarque. É tudo tal e qual. As pessoas formam filas, ordeiramente, estendem os bilhetes aos funcionários que lêem o código de barras e devolvem o papel, e calmamente as pessoas andam ao longo do comboio, embarcando nas suas carruagens à porta das quais está o “comissário de bordo” respectivo.
O compartimento que me cai em sorte é habitado por uma velhota, uma senhora de meia-idade e um homem que pode ser de uma ou de outra. É um ambiente um bocado constrangedor. Subo lá para cima para o beliche e enterro-me na leitura. Passa o comissário e distribui-me um snack. Vem o picas. E depois sucede algo de extraordinário: um outro comissário faz-me gestos para preparar as minhas coisas e para o seguir. Há alguma confusão porque já estou bem instalado. Quando reúno tudo, manda-me para o compartimento do lado onde duas caras sorridentes e uma meia-romã me aguarda. Parece ser um rearranjo de prioridades. A família ganha privacidade e venho para um ambiente mais descontraído. Os dois rapazes são de Shiraz, são sócios, comerciantes de malas e sapatos. Pouco inglês mas muito boa vontade.
Com isto são sete horas, ou seja, chegou a hora do jantar e conforme percebi do comissário de bordo vou até ao restaurante. Lá encontro um tipo com pinta de Dr. Phil, instalado numa secretária de trabalho de onde dirige com ares de Don Corleone o “seu” restaurante. Sem problemas. O que importa é que me põem à frente uma belíssima perna de frango com arroz de romã, uma garrafa de cola iraniana, pão e um yogurte. Marcha tudo com gosto.
Regresso ao meu quarto comum e instalo-me. Está-se bem, um cenário adequado para passar a noite. O único senão é a TV instalada no compartimento que debita uma quantidade perturbadora de decibéis. Afundo-me no computador, tampões nos ouvidos. A barulheira da “televisão” continua mas com uma melhoria efémera: Ma Vlach, uma peça de música clássica checa, da autoria de Bedrich Smetana, serve de banda sonora a uma cena e uma impressão estranha percorre-me… o meu Vltava no meio do deserto iraniano, a bordo de um comboio com destino a Teerão. Um pouco mais tarde, nos comerciais, é a música de O Maravilhoso Mundo de Amélie Poulin que me desperta a atenção. De Praga viajei até Paris, sem sair de Fars.
Todas estas crónicas têm algo em comum, as romãs. Não fazia ideia que no Irão se comia tanta romã ou mesmo até tanta fruta. Um pedaço da cultura persa extremamente interessante.