A estória inicia-se a meio da noite. Estamos em Léon, Nicarágua. E quero dormir nesse dia já em San Salvador, capital do El Salvador. Para lá chegar há que atravessar duas fronteiras, apanhando quatro ou cinco autocarros e uma biclo-táxi do hostel para a estação rodoviária. Custo: cerca de 35 Eur.
Tinha já arranjado com o vigilante nocturno do hostel a primeira etapa da viagem. Seria ele próprio que às quatro e tal da manhã me levaria, evadindo-se temporariamente do seu posto para pedalar durante quinze minutos, arrastando a caixinha com rodas onde eu e a minha mochila nos faríamos transportar.
Ora sucede que ao serão, à conversa com um companheiro de dormitório, descobri que ele planeava fazer a mesma viagem. Ficou então desde logo decidido seguirmos juntos até San Salvador.
Lá fomos, eu e o Hérnan e mochilas bem apertados, e o tipo a deitar os pulmões pela boca, a puxar aquilo tudo. Faz-me sempre impressão estes transportes. Rickshaw, como se diz em inglês. Sinto-me como se tivesse um escravo, não gosto nada. Mas no contexto teve que ser, aliás, para ele deve ter sido bom negócio, considerando o entusiasmo que colocou em toda a operação.
Chegámos. Para o autocarro, que já está pronto. É um daqueles cheios de cor, com largas dezenas de anos em cima, os chamados chicken bus. Sem novidade, a caminho da fronteira. São horas até chegarmos à passagem de Guasaule. O dia já brilha, estamos quase a meio da manhã. Os primeiros 5 Eur foram pagos por este bilhete de autocarro. E agora, é prosseguir, atravessar a faixa de território hondurenho que nos separa de El Salvador. A maioria dos turistas independentes poupa-se a estes trabalhos, largando cerca de 60 Eur por um bilhete de autocarro expresso e segue assim viagem. Mas isso não é para mim nem para o Hérnan.
Saímos da Nicarágua e quando estamos na fila para entrar nas Honduras há um homem que nos pergunta para onde vamos. San Salvador. Diz que o tipo que está atrás de nós na fila nos pode levar. Olhamos para ele com expressão interrogativa e o gajo diz que sim com a cabeça. Sem mais. E nós… er…. qual é a cena? Vamos de perguntar.
É camionista, tem a máquina parada lá fora e vai seguir viagem até San Salvador, mas por causa dos tempos de espera na fronteira – que para ele podem ser mais de 24 horas – só será conveniente levar-nos até à entrada em El Salvador. O Hérnan está hesitante. Conferenciamos um pouco. Tem medo, de raptos e coisas assim. Que às tantas o tipo pára o camião num local ermo onde estarão os amigos e o resultado não será nada bom para nós. Por mim vamos. Poupa-se uma pipa de dinheiro e de qualquer modo não tenho alarmes a soar. Tinha ouvido as conversas dele com outros camionistas, parece-me ser um profissional legítimo. O meu companheiro deixa-me decidir e eu decido que sim. Aceitamos.
Lá fora entramos no couraçado que é aquele camião. Uma besta de carga, com um tractor à americana, com um quarto para o condutor anexo à cabine. Os primeiros quilómetros são de alguma tensão, mesmo assim. Até se baixarem as defesas e seguirmos durante um par de horas pelas estradas das Honduras. O Hernán, tão preocupado que estava, passado dez minutos roncava na cama do motorista e eu vim à conversa. O nosso novo amigo era da Costa Rica, aquela carga vinha de lá. Atravessando meia América Central. Eram barris de concentrado de Coca-Cola. Milhares vastos de Euros em mercadoria. O meu amigo queria era saber de mulheres. Era o seu vício, o seu único vício. Como é que eram as portuguesas? E as holandesas? E quais eram as minhas favoritas? E as do Hernán – como se eu soubesse?
Foi fabuloso, fazer aquele troço em grande estilo, na cabine altaneira daquela poderosa máquina, vendo o mundo de cima, apreciando a companhia, ouvido as histórias de camionista, vendo os quilómetros passar. Mas tudo o que é bom acaba, e lá chegamos à próxima fronteira. Uma passagem sem problemas e num instante estamos do outro lado, de onde deveremos seguir para Santa Rosa, de onde teremos autocarro para outra cidade e de lá, finalmente, para San Salvador.
E nisto diz o Hernán… -“Olha lá, e porque é que não seguimos à boleia até San Salvador, já agora?”. E eu… er… de facto boleia não é a minha onda… não sei, reajo mal com a rejeição. Mas tudo bem, se fosse ele a pedir boleias, seria diferente. E por ele, poderia bem ser assim. De forma que me sentei no chão com as mochilas enquanto o Hernán dava ao dedo. Não foi preciso muito. Por duas vezes se levantou o polegar sem resultados. À terceira para uma pick-up. O Hernán corre, uma breve conversa. Mas não. Ia só até Santa Rosa. E eu… “eh pá então, Santa Rosa é o próximo destino”. Mas agora já não importa.
De novo com o polegar estendido. Nada. E mais uma tentativa. Outra pick-up que para. Desta vez o meu amigo olha-me com um grande sorriso. Percebo logo e corro para lá com as duas mochilas. “Então é assim”, diz-me ele, “isto é uma família salvadorenha que nos leva mesmo até San Salvador, e paramos para comer qualquer coisa a meio do caminho”. Perfeito!
Vamos a caminho, sentados na caixa da pickup. Vamos falando de colonialismo e história. O Hernán é um inflamado defensor dos povos indígenas da América Latina, uma espécie de Che Guevara dos tempos modernos. Esqueci-me de dizer… ele também é argentino! E está a atravessar o continente para conhecer a vida das gentes locais.
Paramos então numa enorme estação de serviço. A família vai para uma mesa esperando que nós vamos para outra, mas nem sei bem como, lá nos sentámos todos juntos e aquilo foi o quebrar do gelo. Depois do almoço nem nos deixaram voltar para a caixa da viatura. Bagagens todas lá para trás, que certamente nos arranjamos para caber todos. O casal, os três filhos e nós os dois. Foi uma viagem tão colorida… tanta conversa interessante, sobre tudo. Desde o incontornável futebol, passando pela História local, os locais a visitar em El Salvador, a delinquência, as dicas prácticas.
Da família, a senhora, que ia a meu lado, no banco de trás, era a mais faladora. O marido era simpático, mas um pouco menos comunicativo. Um dos filhos era demasiado pequeno, a filha, de uns 5 anos, era uma bonequinha que só sorria com uns enormes óculos escuros. Mas engraçado mesmo era o miúdo, de uns 12 anos, com toques de génio. O seu futuro via-o como engenheiro aeroespacial, e não duvido mesmo nada que lá chegue.
Fizemos mais uma paragem. O marido quis-nos oferecer bebidas compradas de uma barraquinha à beira da estrada… sumos naturais, de coco e também feitos de uma fruta que não conhecia e continuo a não conhecer mas que na altura me deliciou.
Chegámos a San Salvador. Trocámos contactos (ainda tenho estas pessoas no meu Facebook e com interacção!) e recebemos as últimas indicações de como chegar aos nossos respectivos destinos no interior da cidade. Em suma, em vez de chegar à noite, a meio da tarde já estava em San Salvador. Em vez de gastar 35 Eur, paguei 5 Eur pelo bilhete do primeiro autocarro. E passei por uma experiência enriquecedora fazendo novas amizades…. ahhhhhh… isto sim, é VIAJAR! 🙂