Viajar sozinho tem destas coisa: há dias, há momentos, em que uma pessoa sente a solidão. Aconteceu em Mostar, aonde cheguei num dia de muita chuva, depois de uma complicada viagem por estrada desde Trebinje, perto de Dubrovnik mas já na Herzegovina. A noite caía, estava frio e sentia que a humidade me ia comendo até aos ossos. Para piorar o cenário, fui dar com um hostel que era mais uma casa privada com um quarto atulhado de camas, onde um conformado viajante asiático se acomodara já.

Com o pior estado de espírito, consegui uns minutos de acesso à Internet e, mais do que isso, arranjei forma de combinar encontrar-me com uma “couchsurfer” local que tinha contactado umas semanas antes. E assim, no dia seguinte depois do jantar, lá me dirigi ao ponto de encontro escolhido, do lado croata da cidade, que a guerra já terminou há mais de dez anos, mas no país real, prossegue, muda, todos os dias.

A Lil era uma mulher jovem, bonita sem o ser demais, com traços que a fariam facilmente passar por portuguesa. Convidou-me a entrar no carro, fomos buscar uma amiga dela para nos fazer companhia e seguimos para a noite… primeiro, um par de cervejas num café bem composto. Ali, conversámos, bastante… mesmo muito. Perguntei-lhes como poderia assistir a uma actuação de “Sevdah”.

E aqui impõe-se uma pausa na narrativa para esclarecer o leitor. E o que é isto de “Sevdah”? O melhor será compará-lo com o nosso Fado. Um e outro são estados de alma, não se descrevem por palavras. Cantam-se, mas não se explicam. Vêm de parte incerta, fazem parte da essência final do seu povo. Na realidade, o artigo na Wikipedia sobre Sevdah confirmou esta percepção:

Today it is a richly evocative Bosnian word, meaning pining or a longing (for a loved one, a place, a time) that is both joyous and painful, being the main theme of sevdalinka lyrics. Thus the people of Bosnia employ the words “sevdalinka” and “sevdah” interchangeably as the name of this music, although the word sevdah can also be used in other meanings. Saudade, the central term in Portuguese Fado, is of the same origin, likewise emerging from the Arabic language medical discourse used for centuries in both Al-Andalus and the Ottoman empire“.

Voltando à Lil e à também simpática Marina, disseram-me logo que não, que não seria possível, que o Sevdha nos dias que correm só é cantado na época alta, quando turistas e herzegovinas emigrados regressam para encher Mostar de vida. Fiquei triste. Tinha muitas expectativas, tinha saboreado antecipadamente uma noite com alcóol e tabaco e Sevdah, de perdição espiritual, quiçá, de lágrimas vivas… e agora diziam-me assim, cruamente, que  deveria esquecer esse querer.

Pois se assim era, paciência, fosse como fosse a noite estava a decorrer agradável, com grande companhia depois de vários dias a solo. Bebemos mais um copo e as senhoras disseram que me iam levar a outro local.

Gostei imediatamente daquele espaço, jovem, vanguardista, descontraido, cheio sem o ser demais, com uma banda que ia tocando música popular, entre os aplausos de uma multidão tão interessada na actuação como ma conversa entre amigos. Estavamos sentados num balcão virados para a parede, e de repente… terminado mais um tema na linha dos anteriores… aconteceu Sevdah. Sem aviso, sem o esperar. Ficámos os três a olhar-mo-nos, em silêncio, sem tugir. Mas mais do que isso, toda a sala explodiu. Num momento a atmosfera era casual, e a seguir sentia-se a electricidade desta tempestade de sentimento. Toda a gente que ali estava vibrava, marcava o ritmo com palmas, entoava a canção. Depois veio outra, e mais outra. Não sei quantas músicas foram tocadas, não terão sido muitas. Era o fecho da actuação, oferecido como um Grand Finale de um espectáculo de fogo-de-artíficio”.

Se há momentos mágicos numa vida, este foi um deles. Porque se sonhava com uma carícia no mundo do Sevdah, o local e este ambiente não poderiam ter sido melhores. E depois, a surpresa, a enorme surpresa, que me deixou por segundos sem reacção, sem acreditar que estava a acontecer. Mágico.

Recomendado:

Documentário Mostar Sevdah Reunion (o nome do grupo mais popular deste tipo de música): extremamente interessante, a um só tempo um trabalho sobre a música e sobre a guerra e as tensões na Bósnia e Herzegovina:

https://www.youtube.com/watch?v=0bJBr9dBOsA

 

E por fim, inédito, em primeira mão, a captação tosca do preciso momento mágico narrado no texto:

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