Fica na Albânia e foi já considerado um dos dez trajectos de barco mais pitorescos do Mundo. É o lago Koman, e para o percorrer o viajante não terá uma tarefa fácil. Da cidade de Shkoder há que apanhar uma furgoneta que arranca ainda antes do dia nascer. Leva-nos num percurso de 40 ou 50 km pela serrania que envolve já uma das extremidades do lago. Mesmo antes de chegar mergulhamos num túnel escavado na rocha e, de repente, estamos num outro mundo, envolvidos por um turbilhão de gente e de carros que chegam, partem, manobram. É a estação dos barcos que fazem a travessia. São dois. Há um maior, que transporta viaturas e passageiros, que está para chegar, e um outro, menor, apenas para pessoas, que acaba de aportar.
Dele saem pessoas que parecem pertencer a outras épocas. Mulheres com vestes tradicionais, camponeses, gentes das montanhas. Espero por ali que se concluam as operações de desembarque e depois é a minha vez. Já a bordo observo os velhos pescadores que por ali andam. Um está sentado no seu pequeno barquito de madeira, vendo todo aquele bulício. Ao longe desenha-se já a silhueta do grande ferry que se aproxima, vindo da outra extremidade do lago. Entretanto, depois de um longo apito, a nossa embarcação faz-se às águas.
Cruzamo-nos umas centenas de metros adiante, já com o vento frio que cruza o vale do lago a gelar-me as orelhas, enquanto os meus companheiros de viagem se acomodam no interior do habitáculo, abrigados da briza matinal. O dia está cinzento. É a névoa que aguarda que o sol ganhe força, mas enquanto isso não me ajuda a tirar o melhor do momento. Podia ser pior. Podia chover. Podia estar ainda mais frio. Mas assim como está é impossível manter-me no exterior durante as três horas de viagem. De tempos a tempos sou forçado a ir para dentro, sob o olhar atónito dos albaneses que não compreendem o sentido de se permanecer ali fora sob estas condições.
A paisagem é magnífica. O “gasolina” vai evoluindo pelas águas calmas do Koman, ziguezagueando ao longo do sinuoso percurso. As curvas abruptas são umas das características desta viagem: a todo o momento parece que chegámos ao final do lago e que não há saída à frente, mas logo a proa gira e encontra uma solução, descobrindo uma improvável continuação. De um lado e de outro abruptas ravinas descem desde os cumes sobranceiros, por vezes a pique sobre as águas. Por vezes passamos junto a pequenas comunidades, não muitas, ali isoladas, dependendo desta carreira para comunicarem com o mundo exterior. Há aves de consideráveis dimensões que mergulham em busca do peixe que será a sua refeição. Ao sentirem o barco que se aproxima, afastam-se, com a ponta das asas quase a tocar a superfície do lago.
A viagem fica marcada por um bizarro fenómeno: de tempos a tempos a embarcação acosta, lançando a tábua de desembarque, nos locais mais inesperados, e lá saem uns passageiros com destino a partes incertas. É fabuloso porque não se avista vivalma. Não há nada em redor, e pelas paredes quase a pique dos montes não se identificam trilhos ou quaisquer sinais de presença humana.
E contudo é ali que aquelas pessoas querem ficar. Enquanto o barco se afasta, uma e outra vez tento segui-las com o olhar, mas a curiosidade não é nunca saciada. Tudo o que consigo é vê-las a evoluir, encosta acima, aparecendo e desaparecendo por entre o verde da vegetação. Para onde irão, o que as aguarda para onde quer que se dirigem…?
Por vezes passa-se o oposto. Subitamente avisto uma figura junto ao lago. E o capitão vê-a também porque o corte nas rotações do motor anuncia mais uma aproximação à margem. Um homem vestido a rigor, falando ao telemóvel num despropósito total, aguarda. Sobe a porta com a destreza de uma cabra alpina, e acomoda-se numa cadeira no interior da cabine. A cena repete-se por diversas vezes. Não posso deixar de mencionar a rapariga de saltos altos e roupa moderna que desembarca, como se nada fosse, no meio de nada, e desaparece, montanha acima, sozinha, sempre a subir… e de novo penso, quem será ela, que vida levará ali, no meio daquela infinita solidão?
Estou no meu posto exterior quando reparo num homem que com um menino se senta numa rocha, apreciando a paisagem que os envolve e o barco que vai passando. Sem qualquer sinal o capitão corta o motor e, umas centenas de metros mais à frente acosta, com o ajudante a lançar a periclitante tábua por onde os passageiros têm vindo e embarcar e a desembarcar. Desta feita uma senhora de idade já avançada caminha destra por aquela superfície instável e alcança solo firme. O barco vai-se já afastando mas assisto à cena: o homem caminha naquela direcção, com o menino à sua frente, em desarvorada corrida que termina apenas quando o gaiato alcança a mulher, que lhe abre os braços para um abraço bem sentido. Por fim o individuo alcança o par, também ele envolvendo-os num abraço, mais abrangente. Quem seria aquela gente?
Já não leva muito para chegar a Fierze, um ponto minúsculo no mapa, que parece ser uma aldeia mas que na realidade é uma entidade quase inexistente que se resume ao ponto onde o ferry termina a sua travessia. Já antes tínhamos encostado a terra, e dessa feita em vez do passageiro isolado saíram quase metade dos albaneses que comigo viajavam, acomodando-se numa série de viaturas que os aguardavam. E também em Fierze a cena se repete. Ao lado do pontão um velho ferry deixando à sua sorte apodrece, inútil. E, aguardando os últimos passageiros, uma carrinha Mercedes amarela. É para mim. Entro no furgão e sei que em breve estarei em Bajram Curry, essa cidadezinha perdida nas montanhas, isolada durante boa parte do ano devido aos nevões intensos e ao degelo tardio que bloqueia acessos até bem dentro da Primavera.
Quando chego vejo que é dia de mercado. Ou talvez todos os dias sejam dias de mercado por aquelas paragens. Não importa. Informo-me sobre o transporte para Tirana. Descubro que tenho ainda um par de horas de espera pela frente. Estendo as pernas por ali, compro qualquer coisa para comer a uma vendedeira e deixo os minutos correr.
O pequeno autocarro percorre caminhos sinuosos em redor de Bajram Curri. Vai recolhendo passageiros nas pequenas aldeias que circundam a cidade. Partilho o meu espaço com gente e galinhas. O que vejo pela janela é uma Europa que nunca pensei ainda existir. Tirando aquela viatura onde me sento, nada do que está sob o meu olhar mudou nas últimas centenas de anos. E isso é algo de verdadeiramente notável.
Este transporte para Tirana faz um percurso que entra pelo Kosovo adentro, apenas para usar a moderna auto-estrada que constitui uma opção muito mais interessante do que as escavacadas estradas de montanha da Albânia. São umas centenas de quilómetros extra e uma fronteira cruzada duas vezes, mas compensa. Por fim terei que me apear num cruzamento e esperar que ainda passem autocarros para norte, de volta a Shkoder. A viagem não se fará sem incidentes, e por um par de vezes duvidei que pudesse chegar a casa dos meus amigos para passar a noite, mas no fim tudo acabou em bem. Foi um dia verdadeiramente mágico, com aventura, paisagens deslumbrantes, pessoas únicas, trajectos loucos… em suma, viajou-se!