20 de Maio de 2023
Esta noite foi uma verdadeira viagem à África que povoa o imaginário de tantas pessoas. A quietude dos espaços sem fins, a noite despida de sons e o céu puro, sem luz, escuro, negro, uma infindável manta de pontos luminosos.
Com o acordar veio o clarear. As poucas pessoas que ali estavam, quatro pares de humanos, preparavam os seus dias. Aos poucos os montes envolventes ganharam cores. Tinha sido uma noite clara, a lua tinha zelado por nós, a escuridão não tinha vencido. Mas agora os tons frios do luar eram substituídos pelos dourados do sol que despertava.
Não havia muito tempo para ali estar. Seria um dia longo. Mais um. Daquele ponto ermo no fim do mundo namibiano até Luderitz seriam umas centenas de quilómetros. Metade em terra batida. Talvez um pouco mais. E o resto em asfalto.
Iniciou-se a viagem. Até ao caminho principal são uns 12 km. O trilho só dá para um carro, com troços e areia, tudo em muito mau estado. Duas cancelas para abrir pelo meio. Já é pleno dia quando chegamos ao estradão.
E agora é rolar. Sempre rodeado pela paisagem que vai mudando ao mesmo ritmo com que muda a cor e o estado do piso. Nada é monótono durante mais tempo do que o razoável.
Aqui e acolá avistamos animais. Uns mais próximos, outros mais longe. Uma ninhada de raposinhas jovens corre pelos campos. São quatro. Avestruzes. Várias. Orixes. Muitos, alguns bem próximos. Gazelas. Um par de zebras solitárias, de uma espécie endémica que só se encontra nesta região.
A estrada D707 é considerada por muitos a mais cénica da Namíbia. Pessoalmente acho um título exagerado. Mas é das mais remotas. Cerca de 140 km distribuídos por dois dias e passei por um carro.
Fui encontrar a C13 que não está nem melhor nem pior. Mais um troço de terra batida antes de finalmente encontrar o asfalto que irá comigo até Luderitz.
Uma paragem em Aus para abastecer de combustível e repor a pressão nos pneus para asfalto. Ter reduzido a pressão em Sesriem foi uma boa decisão. Não o tinha feito antes por preguiça, apesar da recomendação enfática do António, mas de facto faz uma grande diferença na condução. É muito mais fácil e confortável. Só que agora seria asfalto durante os dias que se seguiriam, por isso…
Aus é interessante. Uma aldeia namibiana muito genuína, com um ritmo próprio e a boa disposição e simpatia habituais das gentes deste país. Uma igreja pitoresca, uma linha de comboio, um toque de comunidade rural. Um bom lugar para parar um pouco e observar.
Nos arredores, junto ao cemitério local, existe um outro cemitério com campas militares. Lado a lado descansam para sempre os inimigos de outros tempos. Durante a Primeira Guerra Mundial existia em Aus um campo de prisioneiros britânico onde estavam retidos soldados alemães capturados nas campanhas locais. Sucede que a gripe espanhola atacou ali em força, causando uma razia em cativos e captores. Foram todos sepultados aqui.
Prosseguimos para Luderitz. Já não faltava muito. Uns 100 km. A estrada é de um asfalto impecável. A paisagem mudou mais uma vez. É agora muito clara. Tudo é claro. A areia, as ervas baixas que crescem nos campos planos, as montanhas à distância.
Não há muito trânsito mas os muitos camiões que passam em sentido contrário fazem abanar o meu pobre Jimny.
Estou deslumbrando com o cenário. Imenso, selvagem, a perder de vista. Começam a aparecer cavalos, pastando naqueles campos sem fim. São animais selvagens, indomados, que vivem sem contacto humano, em liberdade absoluta. Vejo vários, alguns isolados, outros em pequenos grupos. Alguém construiu para eles um santuário onde encontram água e, se for caso disso, comida. Ali está um grande número deles. Um dos animais tem uma ferida no pescoço, certamente foi mordido por outro. Uma égua escolta o seu potro.
De volta à estrada. A paragem seguinte será na estação de comboios de Garub, abandonada, muito fotogénica. Tiro ali muitas imagens. O interior do edíficio não tem grande piada, mas visto de fora… magnífico. Fotografo os detalhes e as perspectivas gerais, com o imenso deserto a servir de pano de fundo.
À aproximação a Luderitz a paisagem transfigura-se de novo, é agora feita de muita rocha, clara, e a luz esbranquiçou-se. Sente-se o oceano, na brisa, na descida da temperatura, na luminosidade. Passamos em Kolmanskop, a antiga cidade mineira, hoje abandonada e atração turística. Paro para recolher informação sobre as condições de visita. E 10 km depois chegamos à cidade.
Gosto logo. É muito local, espaçosa, arejada, com bairros de casas como imaginaria, como me lembro de ver na TV nas notícias sobre a África do Sul. Não sei se townships é um termo depreciativo próximo e “bairro da lata”. Ou se designa bairros da classe trabalhadora negra. Se esta segunda versão estiver correcta, então Luderitz tem essa atmosfera.
É sem dúvida um lugar interessante, que atravesso fascinado, absorvendo cada pormenor. Chegamos ao alojamento, a Felicia recebe-nos com grande hospitalidade. Sinto uma aura muito positiva no local, faz-me feliz, confortado e confortável. Apetece estar e sorrir sem razão evidente.
Uns momentos para relaxar um pouco e depois logo de carro para a beira-mar. Até ao fim da estrada, para norte. Um passeio pelas dunas rochosas até avistar a linha de costa, sem fim, para cima. Só praia, deserto, dunas de areia. Dali vejo também a zona urbana. Muito industrial mas não desagradável porque não tem dimensẽs para tal.
Luderiz vive do mar. A Pescanova está aqui. O porto é um dos dois principais do país. Sente-se tudo isto.
Depois para o centro histórico. Um passeio a pé no fim de tarde. Ver aqueles edíficios da era colonial. A estação de caminhos de ferro, de início do século XX. O mais antigo banco da cidade. Casas de habitação, algumas transformadas para hotelaria. Tudo muito interessante.
A igreja, postal de todas as imagens de Luderitz. Ali mesmo próximo conhecemos um senhor idoso, branco, que nos fala da sua vida aventurosa e deste seu final de caminho, no canto onde passou a maior parte dos seus muitos anos. Naquela igreja foi baptizado, casou. Conhece cada canto e cada pessoa da cidade antiga. Até o canito que por alguma razão me segue afectuosamente durante todo o passeio.
Levanto algum dinheiro do banco, compro umas gotas para o nariz que operarão milagres mais tarde e me oferecerão grande conforto para o sono desta noite.
Está na hora de regressar a casa. Estou cansado, tem sido um dia muito preenchido. Em casa pergunto se há alguma loja onde comprar bebidas frescas. Há sim, ali em baixo, cerca de 400 metros. Um bocadinho muito agradável, já com o fresco de final de tarde. Adoro o vibe local deste sítio. Lá se compraram as bebidas e depois ainda houve tempo de andar mais os 100 metros até ao mar para ver um bel por-de-sol.
O serão foi bem aproveitado e por coisas em dia. Não estava irremediavelmente extenuado como noutros dias desta viagem. Conseguia pensar. Foi também um pedaço bem passado.