Caminhava pelo Malecon, a avenida marginal, em Havana. Um cubano diz-me qualquer coisa. Nem me lembro o quê. Sei que respondi sem sequer me deter, e ele, de forma educada mas firme, respondeu que quem anda no Malecon não pode ir com tamanha pressa. Achei piada e logo percebi que o tipo estava cheio de razão. Parei, ficámos à conversa.
Em Cuba tudo se inicia pela origem do viajante. Portugal? Bom, deu para perceber que para o Gregório aquilo era uma novidade muito bem-vinda. Como dezenas de milhares de outros jovens cubanos foi enviado para Angola para combater ao lado do MPLA, contra a UNITA e os sul-africanos. E aprendeu português. Era preciso falar com os angolanos, explicou ele. Quando as coisas ficavam mesmo feias, os locais debandavam com demasiada facilidade e nessas alturas não tinha outro remédio senão falar com eles, gritar, insultá-los. E para isso necessitou aprender a língua. De que ainda se lembrava, estes anos todos depois, com uma clareza impressionante. Ficámos ali à conversa talvez uma hora, sempre em português, e o dele era fluente.
Gregório terá sido uma das pessoas mais amargas que conheci. A sua expressão facial, atormentada, fazia eco das palavras. Todo o seu mundo era negro. Tudo estava mal. Começava logo pela sua experiência africana e pelos fantasmas que o acompanhavam. Os mortos, os extropiados. Amigos e desconhecidos, aos milhares largos. E passava pela penetração das empresas estrangeiras em Cuba. A exploração do país pelas multinacionais, o futuro pós-Castro, com uma descaracterização que adivinhava e descrevia como uma nova versão de Porto Rico. O destino de Cuba só poderia ser o pior, e para ele as coisas estavam ainda mais complicadas agora, com Raul Castro, do que nos tempos do seu irmão mais velho. De resto, não deixava dúvidas sobre a sua opinião. Olhando de um lado para o outro, não fossem ouvidos menos próprios escutar o que queria dizer, logo formulou um desejo: quero é que os Castro vão para o Inferno, e com eles, todos os que o rodeiam. Mandaram para a morte tanta gente…
Para ganhar a vida o Gregório era… professor universitário. Com um masters. E pelo seu trabalho recebia… USD 30. Por mês. Mal lhe dava para comer. Tinha que fazer uns extras. Naquele dia, por exemplo, estava ali porque tinha combinado com um amigo sair para o mar, pescar algo que pudesse vender a troco de mais uns Pesos. Mas não tinha dado. O mar estava alvoraçado, o capitão do porto mantinha a barra encerrada, medida que a mim me pareceu razoável, mas que para o Gregório parecia ser uma ofensa de vulto.
Depois de muito tempo à conversa pôs-se frio. A noite vinha ai. Era tempo da despedida. O Gregório, com algum embaraço, perguntou se o podia ajudar com alguma coisa. Sim, podia, respondi-lhe. Não é coisa que costume fazer, mas quis. Pedi-lhe desculpa por ser pouco e dei-lhe 1 CUC. Era pouco mas deu-lhe muita satisfação, vi-o na linguagem corporal, no olhar. Perguntei se lhe podia tirar uma fotografia. Que sim, que podia. Empertigou-se todo para o retrato e colocou um sorriso, mas naquela face amarga um sorriso não ia bem… até aquele sorriso era amargurado.
Um comentário,sem comentários,a triste realidade cubana.
Nem por isso… 2 semanas depois, muita gente conhecida, muita conversa, e o Gregório foi o único cubano triste que se cruzou comigo. Eu diria que a realidade cubana é brilhante, comparando, por exemplo, com o luso-miserabilismo e a amargura generalizada em Portugal.