O Muhtar entrou na minha vida sem aviso, inesperadamente, como tantas outras que vou encontrando por esse mundo fora. Estava no Chipre. Não na República do Chipre, mas no Chipre do Norte, aquele Estado turco não reconhecido. Fazia Couchsurfing, e o meu anfitrião levava-me a uma aldeia onde sonha iniciar uma comunidade utópica no terreno que ali comprou. E logo à chegada lá estava ele, o Muhtar.

Mas afinal o que é isto de O Muhtar? É o chefe da aldeia, o líder da comunidade. Este, assim que nos viu chegar, perguntou logo ao meu amigo de onde éramos. De Portugal!? Um berro ao seu miúdo para trazer a câmara fotográfica. Já tinham vindo à aldeia inúmeros estrangeiros mas, tinha a certeza, nenhum de Portugal. Havia que captar o momento com a devida solenidade. Tirado o retrato de grupo, convida-nos para sua casa, que faz as vezes de junta de freguesia.

É ele que tem à sua guarda os documentos da comunidade. O foral da aldeia, os registos de propriedade, todos os documentos oficiais. Mostra-nos antigas fotografias, recordações de outros tempos. Oferece-nos uma bebida e passado um pouco convida-nos a conhecer a aldeia. Fomos aceites. Se o Muhtar se oferece para guiar visitantes por ali, é porque fomos aprovados com nota máxima.

Leva-nos pela aldeia, falando, sempre com a tradução do meu anfitrião, das estórias e memórias da comunidade. Entra na casa das pessoas, avisando logo que leva visitas de terras remotas. Conhecemos assim vários aldeões, que nos mostram com gosto um pedacinho das suas vidas de sempre.

Depois caminhamos um pouco pelo campo. Há um depósito de água. O muhtar dirige-se a uma enorme válvula e explica a situação: geralmente a aldeia recebe água durante um certo período de tempo, mas como há visitas – nós – ele vai oferecer um bónus à comunidade.

Pedimos-lhe para ver a mesquita. O nosso homem decididamente não é um fervoroso praticante. Mostra-nos a pequena mas agradável mesquita com algum enfado. Diz que ali ninguém vais às orações, e fá-lo com o orgulho de quem não acredita nessas coisas de religiões.

Encontramos o seu irmão que faz umas tarefas num barracão anexo à casa de família, e sentamo-nos à sombra de uma chapa de zinco, a petiscar romãs e a beber vinho, com a conversa esse bem precioso que me é oferecido nestas viagens, a jorrar em grande.

O dia aproxima-se do fim mas o Muhtar está imparável: vai buscar o seu velho Renault 11, equipado com pneus de… tractor… ouve das boas da mulher, e evade-se para nos levar a ver o espaço rural em redor da aldeia. Vem o irmão e o nosso amigo. Ficamos por fora quase até ao cair da noite. Caminhamos pelos trilhos rurais, apanhamos amêndoas, mostram-nos onde se escondem coelhos e é um prazer enorme ver aqueles manos a recordar os tempos de meninice, sentir a cumplicidade do sangue que lhes corre nas veias. O Muhtar nunca se esquece. É uma daquelas pessoas do mundo que deixa uma marca eterna. Com o seu bigode imenso, a sua boa disposição e hospitalidade. Viva o Muhtar!

 

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