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Pronto, há aqueles dias como o de ontem em que quase tudo corre bem. E depois o reverso da medalha, aqueles que indicam, seguindo a tese de um amigo turco, que de facto Allah odeia-nos a todos.

Já vimos como na véspera fui à estação de comboios em vão, saindo de lá sem o bilhete pretendido e com algum stress. Pois hoje tinha um pressentimento mau que se tornou realidade.

Acordado às 5:15, às seis estava lá, como me tinham dito. Nem vivalma. Lá andei para trás e para a frente a fazer tempo. E com alguma sorte, que estava um frio incrivel mas a porta estava aberta. Ao fim de um bocado passou por mim o segurança, um tipo alto e entroncado com cara de boa pessoa. Passou e voltou a passar, até que me veio chamar. Convidou-me para me abrigar no seu gabinete. Lá me sentei no sofá, com vista para a TV, trocámos algumas palavras… eu falava em inglês, ele, em turco. Valeu o Google Translate no tablet. Mostrou-me o funcionamento do sistema de câmaras de vigilância da estação, impecável, tudo controlado com um joystick, zoom in, zoom out, rotação. Uma classe. Depois, abriu um cacifo e foi fazer uma verificação de material. Sucede que o que estava lá dentro era um arsenal de guerra. Quase vinte G3 e uma série de caixas de munição. Coletes à prova de bala, equipamento de comunicações. Uma alegria. Há coisas bizarras.

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Às tantas fez-me sinal de que já podia ir comprar os bilhetes. Quer dizer… o que eu podia era tentar ir comprar o bilhete. O sistema continuava em baixo. O tipo mandou-me ir para o comboio e tratar do assunto lá. Cheirou-me logo a esturro. Claro que assim que entrei no vagão com os compartimentos-cama, o responsável pôs-me logo na rua. Sem bilhete, nada feito. Lá voltei ao homem da bilheteira, que foi comigo, mas sem resultados. O outro era irredutível. Discutiram durante um bocado, mas sem um bilhete a sério eu não poderia entrar. O tipo da estação sugeriu-me que viajasse na carruagem normal, só com bancos, até outra estação onde compraria então o necessário bilhete. A contragosto concordei, pensando como iria explicar a minha presença a qualquer revisor que me abordasse. Sentei-me, saquei do GPS… credo! A tal estação era a uns 800 km dali. Pirei-me a correr do comboio que arrancou passado três minutos.
E pronto. Encalhado em Tatvan às 7:30 da manhã. Mandei um SMS ao meu afintrião. Sem resposta. Fui andando de regresso à cidade, sem saber o que fazer, pensando na vida. Sentei-me perto do Dodo Cafe a usar a net deles. Mandei mensagem Facebook e um SMS através do Skype… sem resposta… comecei a ver as opções de voos, tomei notas, fiz contas. O frio apertava. O café ainda estava fechado mas deixaram-me entrar e estar sossegado lá no quentinho. E por fim ficou decidido. Regresso de Batman, o meu ponto de chegada, na Sexta-feira à noite. No dia seguinte. Mais SMS’s, desta vez para o Adnan. E tentativas de contactar outro potencial anfitrião em Tatvan. Mas estava a correr mal. O café iniciou os serviços…. encomendei um chá e uma tosta que me soube divinalmente… quentinha, com aquele frio.

Ao fim da manhã tinha que fazer qualquer coisa. Fui esticar as pernas. Ia pensando no desperdício, de estar ali, um dia inteiro, com a bagagem atrás, que me cortava a possibilidade de ir até Van. Ainda por cima, o tempo, que se tinha previsto chuvoso, não estava nada mal.

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Ia nisto quando fui abordado porum grupo de três miúdas de uns 16 ou 17 anos, lenços na cabeça, mas muito atrevidas. Eu só queria que me deixassem em paz. Naquela situação não estava com paciência nenhuma para conversas, muito menos com um grupo de adolescentes de hormonas alteradas, que se iam rindo e rindo, a cada frase em inglês arranhado.  As perguntas do costume… “here are you from?”, “what’s your name”… etc etc… e eu ia andando, esperando que fossem à vida mas foi complicado… riam-se, ofereceram maçãs, mais conversa de treta, e mais risos. Já ia quase fora da cidade, caminhando sempre à beira do lago,quando por fim acharam por bem despedir-se e voltarem para trás.

Quanto a mim… que fazer… que fazer…? Caminhar devagar, esperar, pensar. Sentei-me um pouco. Tornei a andar. Sentei-me a merendar. Ao sol deu-me sono. Afinal, tinha dormido muito mal.  E o tempo que nunca mais passava.

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Fui outra vez até ao Dodo, ver o “mail”, que é como quem diz, o Facebook, que nestes dias se tornou no meu principal centro de comunicações. De Batman, boas notícias, o Adnan punha-me à vontade, que não me preocupasse que teria todo o apoio e companhia. Mas o meu host de Tatvan mantinha-se silêncio. E quando deu sinais de vida, fiquei sem fala… não me podia dar guarida, ou seja, deixou-me agarrado, já a meio da tarde, sem possibilidade de orientar a minha vida, por exemplo, indo desde já para Batman.

Pelo meio tentava que o Emre contactasse um potencial anfitrião em Tatvan, mas o telefone que tinha estava errado. Portanto, ou dormia ao relento ou abria a bolsa. Resolvi ir ver o hotel cuja referência levava desde o primeiro dia, como plano B. E assim que me afastei um pouco do Dodo, dei com ele, sem verdadeiramente procurar. Um sinal do destino? Entrei, perguntei quanto seria uma dormida para mim… 70 TL, cerca de 26 Eur. Agradeci, fiz sinal que ia pensar, e voltei a sair. Dos meus contactos, nada de novidades. Parecia que estava arrematado. Aproveitei e fui comprar o bilhete de autocarro para a ida do dia seguinte para Batman.

Fascinei-me de novo com a vida em Tatvan, com a animação daquela rua principal, cheia de comércio, tradicional, sem ares de bazar à oriental. São sobretudo lojas, mas de tudo, de todos os géneros, com todos os tipos de gente. Há também alguns vendedores de rua, poucos. É maravilhoso. E de maravilha em maravilha cheguei ao escritório da Best Van Tours onde tratei do bilhete sem problemas.

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Regressei ao hotel. Estava conformado. O problema do comboio custou-me 35 Euros extra, mas pelo menos a viagem seria pacífica, se não surgissem mais contratempos. E agora, mais 26  Euros. Consolei-me com o pensamento na recuperação dos meus bens supostamente roubados. A sua perda seria um prejuizo muitissimo superior.

O recepcionista levou-me ao quarto e depois de tantos dias “na estrada” e após a tensão do dia, aquilo parecia-me um palácio. Rejubilei. Espaçoso, com vistas para o lago, uma secretária e Internet estável. Uma casa de banho e até um frigorífico. Senti-me no céu. Usufrui daquele conforto infinito durante mais de uma hora. Entretanto tinha combinado com o meu amigo topógrafo um encontro, às seis, no Dodo.

O meu café favorito de Tatvan, ponto de descanso de todos os dias, estava agora ao fim da rua da minha nova morada. Em cinco minutos cheguei lá. Bebemos um par de chás e fomos até à cidade. Tinha-lhe mencionado que gostava de ir ao barbeiro e ele tratou do assunto. Pagou, não me deixou sequer hipóteses de recusar. Para ele, sou um convidado. Fora de questão eu gastar um cêntimo no que quer que seja.

Depois de serviço de barbeiro digno de rei, com todos os detalhes que nunca imagineu pudessem existir para algum tão simples como fazer a barba a máquina zero, levou-me a jantar. Um kebab delicioso. Para terminar, o incontornável chá. E para fechar com chave de ouro, fez-me entrar num daqueles estabelecimentos que já tinha referenciado, verdadeiramente locais, decadentes, espaços abertos, apenas com umas mesas quase rente ao chão acompanhadas de bancos igualmente curtos. É o local onde os homens mais velhos e com aspecto mais tradicional vão para o seu chá e eu já os tinha debaixo de olho, sabendo contudo que não me atreveria a entrar num sózinho. E afinal, a coisa solucionou-se.

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Já tinha dito ao meu amigo que estava cansado e que não me poderia demorar. Ele, delicadamente e com todo o tacto, deixou-me  em aberto a hipótese de regressar ao hotel entre cada um dos passos deste magnifico serão, mas eu, apesar de na realidade querer mais aproveitar o que tinha pago do que propriamente descansar, fui-me deixando embalar. Mas depois do chá, lá disse que era melhor ir embora. Claro que tive direito a escolta, deixado à porta do hotel com o abraço e a beijoqueira à árabe / turco / curdo.

Usufrui do conforto do hotel enquanto o sono não me venceu. Era dez horas quando apaguei a luz para dormir.

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