Acordo relativamente cedo. Sento-me na cama sofá que existe no alpendre da casa. Tento ler, mas as malditas cabras, que me hão-de infernizar dia e noite durante os meus tempos em Kayakoy, não me deixam concentrar. O balir é constante, os badalos sempre a dar, as correrias. E os proprietários, uma família curda que vive aqui defronte, não é melhor… há a gritaria, as chegadas e partidas constantes, sempre correspondidas com algazarra total do rebanho… e ao serão, tiros, para o ar, suponho.
A minha amiga acorda e ficamos um bom bocado à conversa. A noite foi divertida. Acabaram por ir para casa da artesã que é sua conhecida, beberam bom vinho, cozinharam, jantaram bem, tocaram música tradicional. Perdi uma boa festa. Paciência.
Já é quase hora de almoço quando me arranco de casa. Decidi procurar o mosteiro perdido de Afkule, construido nos penhascos por um beato que consagrou a sua vida ao projecto. É uma boa caminhada, quase sempre por asfalto.
Passo defronte de um café. Está vazio, com excepção de uma mesa ocupada por quatro velhotes. Um deles convida-me a parar e beber qualquer coisa com eles, mas declino com um sorriso e prossigo. Lembro-me como num livro de Paul Theraux – esse gigante da literatura de viagem – ele refere ser o japonês uma língua auto-explicativa, que se entende sem se a conhecer. Senti um pouco isto com este homem turco. Convidou-me para me sentar, recusei, ele disse algo que certamente foi “então porquê?”, eu fiz um movimento de “ainda tenho um logo caminho pela frente”, e ele respondeu qualquer coisa como “então está bem, fica para a próxima.”
Mais à frente há uma indicação que se deve sair da estrada para se chegar a Afkule. O caminho é claro. Primeiro por estradão de terra batida, e depoi s por um trilho marcado com os códigos habituais.
De repente tenho o azulão do Mediterrâneo defronte de mim. Estou no topo, bem alto, no cume das falésias. Mas do mosteiro nem sinal. Afinal estava lá, o tempo todo, mas mais abaixo, a meio caminho para a linha de água. Lá desci um trilho ingreme e sinuoso, até chegar ao recinto. Existe uma casa, ou melhor, os restos de uma casa. E uma capela escavada na rocha, uma gruta, e mais salas conquistadas à falésia. Tranquilidade e beleza azul.
Dali tenho uma encruzilhada de trilhos. Já estou um bocado cansado, mas decido seguir a indicação para chegar à praia mais próxima, localizada em frente a uma ilha onde se encontram os restos de um outro mosteiro.
A coisa não começa bem, perco o trilho uma série de vezes. Depois, seguindo-o sem mais precalços a caminhada complica-se. Estou habituado a percursos pedestres onde o desafio é simplesmente ultrapassar os quilómetros, mas aqui as coisas não são assim tão simples. Há súbidas e descidas constantes, estreitamentos tão fortes que o trilho desaparece por segundos, e os matos nos abraçam até à cintura. Os contornos do terreno são acentuados e o caminho a seguir reflecte essa realidade. Cada cem metros tornam-se uma pequena vitória.
Amaldicoei mil vezes o momento em que decidi ir por ali, mas agora já não faria sentido voltar para trás, até porque seria mais a subir do que a descer e a energia estava por baixo. Ainda vejo o mar mais umas vezes mas depois até isso me é retirado. Passa a ser sofrimento puro. Não me recordo de ter sido tão castigado como nesta caminhada. Foram 6 km daquilo.
De repente, uma motorizada, estacionada. Enfim, um cheiro de civilização. E logo à frente ouço um carro passar numa estrada. Piso o asfalto com imenso gosto.
Logo a seguir, a entrada para a praia, que é paga. Cerca de 1,20 Eur. Com a sede com que estou pagaria uma fortuna para ter acesso a liquidos, por isso largo o dinheiro sem hesitar, dirigo-me ao bar de praia e delicio-me com uma Coca-Cola. Queria mesmo era ir à ilha defronte, mas sei que não estou interessado em pagar o que me vão pedir.
Passeio pela praia desinteressante, tiro as botas, sento-me um bocado a relaxar, a recuperar do intenso esforço. Um “marinheiro” aborda-me e aproveito para perguntar quanto seria para ir até à ilha e voltar. 10 Eur. Pois, não.
Podia ficar mais tempo. Existem dolmus para Kaya a partir dali. Mas está tudo visto. Passo pelo café para comprar uma garrafa grande de água fresquinha e sento-me à espera do transporte.
Desembarcando em Kayakoy não resisto a mais uma expedição pela cidade fantasma. Hoje, com um um pouco mais de tempo, interno-me quase até meio da povoação. A noite vai caindo. Subo até uma das capelas e reparo que de lá se vê o mar, nas costas da cidade. O céu vai ganhando as cores alaranjadas características desta hora. Depois meto-me pelo arruamento mais alto, Encontro-me com um ou outro raro turista. Até ser demasiado escuro e a prudência me chamar de volta. Quando desco eleva-se no ar o último chamamento para a oração. É um daqueles momentos mágicos.
Em Kaya vou ao supermercado, compro umas quantas guloseimas, e depois, não resistindo à necessidade de uma refeição decente, sento-me num restaurantezinho chamado Casper, que será o meu pouso nos dias seguintes. Mesmo em frente à paragem de dolmus. O casal de proprietários é misto. Ele, turco, ela inglesa. O ambiente é estranho, porque, a um só tempo, tem um toque local, genuino, familiar… mas é frequentado por residentes ingleses. Ah, e tem Internet.
Encomendo uma dose de pimentos recheados, que demoram uma eternidade a chegar, e penso como as coisas são feitas de paradoxos. Em tantos outros locais, em quase todos os momentos, a espera enfurecer-me-ia, mas ali, com uma garrafa de cerveja fresquinha para me fazer companhia, e tratando das minhas coisas online, aquele tempo soube-me bem, deixou-me a pensar na paridade fast food / slow food.
A espera valeu a pena. Os quatro pimentos apresentam-se numa bandeja, que vem acompanhada de uma taça de delicioso molho de yogurte e alho. Como lentamente, apreciando os sabores. Quando acabo já é noite cerrada. Tenho dois quilómetros pela frente, mas, o que não sabia, é que não existe iluminação pública. Minto. Existe, mas não funciona. Nem me teria deixado ficar, sem lanterna, senão tivesse verificado na véspera. Mas não esperava a escuridão. No fundo, não foi um problema. Se o terreno não for acidentado costumo andar bem sem luz, e de facto, asfalto é asfalto. Cheguei a casa sem incidentes. As portas estavam todas abertas. A Ozden tinha-se ido embora. Na realidade jantou comigo, antes de apanhar o dolmus para Fetyhe, de onde tinha um autocarro para Ankara. Foi uma sensação estranha, entrar na casa e ter apenas o incessável balir das cabras como companhia.