Esta é uma questão bem conhecida dos viajantes experientes, que pode influenciar, e muito, a forma como atravessamos uma região. Poucos andarilhos arriscam a travessia de áreas em guerra aberta, mas mesmo quando se cruzam regiões habitadas por comunidades ancestralmente antagonistas há que ter algumas coisas em consideração.
Antes de mais, que se considere que os conflictos têm uma escala de intensidade, que variam entre meras antipatias regionais e os ódios mortais que podem ter consequências graves. Não é preciso ir muito longe para encontrar um exemplo para o primeiro caso: não terão sido duas nem três vezes que ouvi de viajantes estrangeiros que alguém no Porto lhe disse que não valia a pena ir a Lisboa, porque, e passo a citar, “não havia lá nada para ver”. E é contra isto que nós, enquanto viajantes temos que nos preparar. Se eu me puser na pele de uma destas pessoas e pensar em tudo o que perderia se seguisse à risca um conselho assim arremessado, de forma inconsciente, quase criminosa, sinto um imenso arrepio. As rivalidades entre as primeiras e segundas cidades de um país, predominantemente de sentido único, (da segunda para a primeira), são uma realidade que encontrei na República Checa (Praga vs Brno), na Síria (Damasco vs Aleppo), na Lituânia (Vilnius vs Kaunas), em Espanha (Madrid vs Barcelona) e em tantos outros países. O mecanismo é tão semelhante que a minha defesa é practicamente automática. Qualquer crítica ou conselho veemente proveniente de um habitante de uma cidade dirigida a uma outra urbe do seu país, entra-me por um ouvido e sai-me pelo outro.
No patamar seguinte, temos as inimizades históricas entre nações. Não funcionam de forma muito diferente e, se consideradas com aluma cautela, são igualmente inofensivas. Manifestam-se sobretudo por conselhos a evitar o país alvo de todas as críticas. Gregos a falar da Turquia, checos a falar da Eslováquia, croatas a falar da Sérvia, dinamarqueses a falar da Alemanha, alemães a falar da Áustria. Há que detectar estes caudais de opinião negativa e isolá-los de qualquer processo decisivo no decorrer da viagem. Lembro-me de estar em Amman e fervilhar de frustração por não conseguir recolher junto dos meus amigos jordanos e palestinianos informações apuradas sobre a situação na Síria. Precisava de decidir se cruzaria a fronteira no dia seguinte, mas em vez de me darem factos, a rapaziada descrevia-me um mundo diabólico onde eu certamente desapareceria para não mais ser visto se ousasse cruzar para o lado de lá. Como uma cereja em cima do bolo, alguém, de aspecto bastante credível, chegou a dizer que a fronteira tinha sido encerrada e nem valeria a pena tentar atravessá-la. Isso valeu-me, para além da natural angústia, um enorme esforço no sentido de confirmar a informção, que na realidade estava completamente errada.
Mas se nos casos mencionados as inimizades não resultam em mais do que numa inconveniente manipulação de informação, há cenários em que é preciso ter algum cuidado, porque se as coisas descambarem podem conduzir a situações efectivamente perigosas. Este risco verifica-se em áreas onde a memória de uma guerra passada está ainda bem fresca na memória colectiva, ou onde os riscos de um conflicto armado se encontram potenciados. Quando cruzei a ex-Joguslávia, e tendo especialmente em mente o Kosovo, fiz questão de levar uma bandeira portuguesa bordada de forma bem vísivel na minha mochila. Porque quando se caminha sobre um barril de pólvora, se não formos reconhecidos como amigos, somos automaticamente inimigos. E não desejaria de forma alguma ser tomado como um sérvio num bairro kosovar, ou, inversamente, como um kosovar em zona controlada por sérvios.
Chipre – que nos dias que corre anda pelas bocas do mundo – é um destes “cantinhos”. Depois da tentativa de controle do novo país por parte da comunidade grega, nos anos 70, a Turquia invadiu o território. Seguiu-se uma breve mas violenta guerra, e desde então a ilha mantém-se dividida por uma linha supervisionada por forças da ONU. Até há pouco tempo, atravessá-la era bastante complicado, e quem o fizesse podia bem ser advertido que estava a trilhar caminhos perigosos, numa ameaça (pouco) velada à sua segurança apenas pelo facto que esse alguém estaria disposto a interagir com o “inimigo”.
Em Maio de 2010, menos de dois anos volvidos sobre a invasão russa da Geórgia, dei por mim junto a um posto fronteiriço, do lado georgiano, precisamente na área que será sempre o canal de acesso natural para um futuro ataque russo. Os guardas de serviço ficaram nervosos, muito nervosos, e tiveram uma longa conversa com o velhote local que nos acompanhava. De forma delicada mas tensa certificaram-se que abandonávamos a área rapidamente. Lição aprendida: há que considerar as relações entre países qundo nos deslocamos em zonas fronteiriças.
Um caso avulso: quem visitar Istanbul deverá ter em conta a rivalidade violenta entre os três grandes clubes de futebol da cidade, sobretudo entre o Galatasaray e o Fenehrbace. Não quererá, de forma alguma, andar pela cidade com peças de vestuário das cores de um destes clubes, especialmente em dias de jogo. Simplesmente é demasiado perigoso. É outro exemplo de conflictualidade que poderá não ser evidente aos olhos do viajante incauto mas que poderá rapidamente descambar para uma situação efectivamente perigosa.
E tudo isto faz-me lembrar o que se passou comigo em Dubrovnik, na Croácia. O meu itinerário deveria levar-me de lá até Mostar, já na Herzegovina, mas, por causa de umas fotos que tinha visto e me tinham parecido interessantes, meti na cabeça que queria passar uma noite em Trebinje, também na Herzegovina, mas muito próximo de Dubrovnik. Tinha investigado e visto na Internet que existia um autocarro diário. Tentei confirmar com a recepcionista do meu hostel. Não sabia de nada. Sugeriu-me que perguntasse no posto de turismo. A mesma coisa. Trebinje parecia ser uma ilustre desconhecida por ali. Apesar de ser a cidade mais próxima, a uns meros 20 km, ninguém fazia ideia de como lá chegar. Acabei por arriscar e fui para a estação de autocarros de mochila feita. Cheguei à bilheteira e pedi o tal bilhete. Ah! Que naquele dia não havia autocarro. Talvez no dia seguinte. Entretanto já tinha vendido as sobras da moeda croata, no balcão do lado. O dinheiro estava quase à conta para aquele bilhete que aparentemente não seria comprado. Voltei ao balcão de câmbios, tornei a pagar as devidas comissões e levantei a quantia necessária para comprar a passagem para Mostar. Já com esse papelinho em meu poder descobri uma rede wireless aberta e sentei-me no chão, um pouco afastado. Tinha que encontrar um alojamento em Mostar para esse dia e também precisava de avisar a minha anfitriã em Trebinje do que se tinha passado. E estava eu nesse processo quando alguém me toca nas costas e me diz numa mistura de línguas:
“- Hey, português (bendita bandeirinha na mochila), o autocarro para Trebinje está ali.”
Viro-me, incrédulo, e vejo-o. Sem sombra de dúvidas, dizia lá TREBINJE. Vou à bilheteira, um pouco alterado, e peço explicações. Como é, ando para aqui a trocar dinheiro feito tolo, dizem-me uma coisa que é outra e afinal há autocarro para onde quero ir. As senhoras encolheram os ombros, aceitaram o meu bilhete de volta, trocaram-no para um outro para o meu destino fazendo-me pagar uma taxa (sem falar que tive novamente que trocar dinheiro na casa de câmbios) e disseram descontraidamente:
“- Pois, às vezes vem, outras vezes não, nunca se sabe”.
Portanto, quando no início dos anos 90 a unidade do exército josgulavo, dominado já pelos sérvios, arrancou de Trebinje e tomou posição nos montes defronte de Dubrovnik, bombardeando a cidade croata durante alguns dias, quem estava a tramar era um pobre viajante português que, vinte anos depois, teve que enfrentar as consequências desse acto.
Moral da história: quando se está a viajar é necessário enquadrar as informações recebidas à luz de potenciais inimizades ou rivalidades. Podem ser de natureza religiosa, regionalista, étnica. Mas se não aplicarmos um filtro adequado e talhado à medida das circunstâncias, seremos arrastados para estes conflictos com consequências de proporções diversas. E mais, se andarmos por áreas onde as tensões chegam a níveis de ódio, convém deixarmos bem claro e de forma antecipada que não pertencemos a nenhuma das facções envolvidas. Convém não esquecer que qualquer uma das partes envolvidas num conflicto – potencial ou em curso – fará o seu melhor para conquistar o coração do viajante que se apresenta neutral. Recordo-me de subir as colinas de Prizren (Kosovo) e de me interessar pelo bairro anteriormente habitado pelos sérvios e hoje transformado em ruínas depois de uma noite de fúria da população kosovar. Um grupo de “putos” que por ali andava, vendo o meu interesse e certamente sentido um peso de consciência colectiva, fizeram todos os possíveis por me desviar a atenção e reencaminhar-me para o castelo local.
Para terminar, convém não esquecer o bom-senso na hora de emitir uma opinião sobre as razões de qualquer um destes conflictos. Mesmo que não se coloque directamente em perigo, poderá pisar a linha da delicadeza para com os anfitriões.
“Pormenores” que fazem a diferença. Muito bem lembrado!