Sempre que o Cruzamundos viaja, entre outras coisas, há duas categorias de locais que exercem um fascínio magnético, que vão directamente para o topo de prioridades, que decidem planos, que justificam desvios de centenas de quilómetros. São sítios mal-amados pela generalidade das pessoas, há gente que me olha de lado, dizem-me: “Não compreendo, porque é que queres ir lá…?”. Estou a falar de cemitérios e de lugares abandonados. Sobre as maravilhas dos cemitérios publiquei um outro artigo aqui no blog, Visitar cemitérios: de mãos dadas com o charme. E agora senti que estava no momento certo para explicar a quem quer que sinta curiosidade porque é que há “maluquinhos” que dão um reino pelo direito de explorar um edifício devoluto, que se babam perante uma ruína, um vestígio abandonado de presença humana… espero que goste da leitura.

Não me recordo quando descobri que tinha este gosto. Acho que se revelou com a chegada da mania das fotografias. Com uma câmara na mão senti uma afinidade de primeiro momento com temas que contivessem decadência… humana, urbana, natural. Talvez fosse por uma certa originalidade na escolha daquelas chapas, geralmente a preto e branco, que contrastavam com os sujeitos habituais que via atrais as pessoas que me rodeavam.

Depois, já não sei onde, vi uma galeria de imagens recolhidas num edifício arruinado. Os detalhes perderam-se nas densas brumas da pouca memória, mas ficou certamente a decisão: tenho que experimentar isto! Do pensamento à acção foi um passo. Gostei. Adorei a sensação. E nunca mais parei. Hoje em dia não concebo uma visita sem uma boa câmara fotográfica, mas a exploração destes ambientes tornou-se algo por si, não um pretexto para uma sessão de fotografia. Aprendi, ganhei experiência. Descobri que esta actividade tinha um nome: Urbex, uma contracção de um termo inglês mais detalhado – Urban Exploration.

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Os aficionados de Urbex são uma ampla comunidade. Internacional, com núcleos nacionais, locais. Há websites específicos, muitos blogs, grupos de Facebook, livros publicados. As pessoas conhecem-se, trocam informações, passam serões a contar aventuras. Na ordem do dia está muitas vezes a discussão sobre o que é Urbex. Para alguns é um acto duro e puro. Envolve a infracção ostensiva da lei, a penetração em edifícios fechados e selados, com técnicas de escalada e o diabo a quatro. Segundo esses só assim se consegue a verdadeira experiência, antes da chegada dos vândalos e saqueadores que acorrem às estruturas já abertas por outros. No ponto oposto da escala, existem os que acreditam que Urbex se aplica à visita a qualquer vestígio de presença humana passada, como um simples “monte” alentejano deixado para trás.

Como tantas vezes sucede, a virtude talvez esteja no meio. Por personalidade e escolha pessoal, não me revejo a abraçar os valores da facção mais radical, arriscar lidar com situações que entram no plano da infracção criminal, ter que me preocupar a sério com a polícia, violar os direitos de legítimos proprietários. Mas por outro lado não consigo conter um sorriso ao ver locais que outros classificam como sendo de Urbex, muitas vezes reduzidos a quatro paredes que mal se aguentam de pé.

Tenho cá para mim que o Urbex ideal se faz em sítios onde a entrada se faz sem se forçar nada, simplesmente entrando por uma abertura existente – uma janela escancarada, uma porta já sem fechadura – onde sinta que, apesar de poder estar a correr riscos, estes não impliquem uma noite atrás de grades.

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Mas, e porquê? Como é que explico a uma alma curiosa o que é que me atrai em algo tão bizarro como errar pelos corredores de um edifício abandonado, de uma cidade fantasma, de uma base militar deixada pelo Exército…? Vamos lá ver se consigo transmitir a magia que sinto a cintilar nestes lugares…

Primeiro [sem qualquer ordem de importância, contagem apenas para ajudar a arrumar as ideias], a adrenalina moderada, a sensação de penetrar num local proibido, os sentidos alerta… vamos encontrar aqui alguém…? Talvez um saqueador de metais, talvez um sem abrigo, talvez um toxicodependente…? Talvez outro explorador, talvez um… fantasma? A dosagem das probabilidades de um encontro, na verdade, varia… quanto mais próximo de centros urbanos, mais elevada. Quanto mais remoto for um local, pois então, menos provável será encontrar por lá alguém. Edifícios abandonados em cidades ou na sua periferia são muito procurados por indigentes em busca de um tecto amigo. Mesmo assim, raramente um encontro se revela ameaçador… fica-se por um “bom-dia” e segue-se caminho. Mas há sempre aquela coisinha, aquele alerta, os sentidos atentos… será alguém, será o restolhar do vento… ? É excitante.

Segundo, a curiosidade, simplesmente a curiosidade. De ver o que existe ali dentro. De descobrir como funcionavam as coisas, de entrar numa sala e tentar perceber para que servia. De cuscar velhos arquivos, de procurar datas. Uma das perguntas clássicas de um explorador para outro: – “Chega aqui! Olha lá… tens ideia de para quê é que isto servia?”. É que há ambientes mesmo propícios a este trabalho de especulação… observar a maquinaria numa central de electricidade de finais do século XIX é quase tão fascinante como ver por dentro uma nave espacial.

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Terceiro, aquilo a que chamo, “conversar com fantasmas”. Está-se numa pequena casa de habitação abandonada mas ainda em perfeito estado de conservação… fecha-se os olhos e deixa-se a imaginação fluir… que sons se ouviriam aqui há quarenta anos… risos? Discussões? Orgasmos? O choro de um bebé? O silêncio de um habitante solitário? Quem viveria aqui? Gente feliz? Gente triste? O que comeriam, o que estariam a fazer a esta hora mas naquele fosso de tempo de quatro décadas? Gosto de me chegar a uma varanda de um palacete em ruínas, olhar para a paisagem e conjecturar sobre os pensamentos que há gerações atrás o legítimo proprietário teria ao observar as mesmas colinas em redor… pensaria na dívida contraída? No filho que desejava e teimava em não chegar? Nas colheitas da quinta do vale?

Quarto, o valor histórico. Será deformação profissional? Será a pressão do historiador que há em mim? Chamem-lhe o que quiserem mas gosto de entrar num local arruinado e sentir o cheiro da História. Percorrer os bunkers da ex-base Soviética de Milovice, onde se encontrava o quartel-general das forças do Pacto de Varsóvia na Europa Central e saber que ali existiam dois botões que numa fracção de segundo causariam a destruição do mundo tal como o conhecemos desde há dois milhões de anos, é algo que arrepia, é muito gratificante, é uma razão per se para se andar nestas andanças do Urbex. Caminhar nos túneis infinitos das instalações ultra-secretas que os soviéticos construíram na Crimeia para servir de quartel-general alternativo para o Governo do país em caso de crise nuclear tem algo que se lhe diga…

Quinto, o aspecto plástico da coisa, a estética própria da decadência, as fotografias que se arrancam desses ambientes. São conjuntos temáticos únicos que oferecem oportunidades de perspectivas únicas. É o regresso às origens, a expedição em caça da imagem. Poderia criar mil galerias com todas as chapas que obtive em locais abandonados, da Bósnia ao Curdistão, de Portugal à Grécia, todos eles oferecendo-me o que aqui descrevo mas com variantes culturais e circunstanciais únicas. Há sempre diferenças, há sempre algo novo.

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Sexto, o sentido de exclusividade, de merecer o acesso. Vamos lá ver… a cada momento que passa, sob a estrutura da torre Eiffel, encontram-se milhares de pessoas. É fácil estar ali, é vulgar, é banal. Mas estar numa cidade fantasma nas estepes da Mongólia não é para todos. Há locais destes aonde se chega e se pensa isso mesmo… quando foi a última vez que aqui esteve alguém…? Entra-se em salas, depois em terraços… sobem-se escadas… e sente-se que aquilo, sem o ser, é nosso. Não temos que partilhar, é nosso, somos donos do silêncio, dos pensamentos, dos ângulos de visão.

E como encontrar estes locais? Às vezes surgem por acaso, vai-se ao volante e subitamente ali está, uma fábrica abandonada, um palacete que já viu melhores dias. Há sempre uma emoção aguda naquele momento do avistamento, há sinetas e buzinas que apitam, um alerta excitado a que se segue invariavelmente a decisão: “Tenho que ir ali!”. Outras vezes, em viagem, os locais são detectados através de pesquisa ou mesmo de contactos directos com urbexers da região ou do país. Aprimora-se o plano, tiram-se coordenadas, leem-se relatos de outros exploradores, avaliam-se riscos, descobrem-se transportes públicos para as imediações, acessos, pontos de entrada nas instalações, equipamento necessário.

Um ponto importante nisto do Urbex é a avaliação da linha de tempo do vestígio. Quando algo é abandonado, geralmente é deixado mesmo assim fechado; não deixa de ser propriedade, por vezes há elementos com algum valor no interior. Este é o momento zero, por assim dizer. Naquele momento não é fácil de se definir o local como abandonado. Sucede muitas vezes por pressões económicas, por movimentos demográficos: a fábrica que faliu, o liceu que deixou de ser necessário face ao encolhimento da população, a escola primária que servia a aldeia envelhecida. Depois, um dia, alguém se aventura, força uma porta, parte uma janela… raramente urbexers, quase sempre salteadores, por vezes gente pobre em busca de um abrigo. Mas com esse acto abrem as portas a todos os outros. Está ultrapassada a fasquia psicológica do trespasse violento. Seguem-se todos os outros, num grupo em que me incluo… e visitar neste momento é algo valorizado… o local é quase virgem, a acção dos elementos e dos humanos é ainda indelével. Se existiam bens facilmente transaccionáveis certamente já desapareceram, mas ainda não surgiram grafitties nas paredes, fezes nos cantos. As pinturas estão impecáveis, os móveis encontram-se inteiros. Consegue-se o melhor.

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Depois, chega a degradação. Gradual, inexorável. O local vai perdendo atractivos, as principais razões que motivam uma visita de urbexer desvanecem-se. Por fim, são paredes e entulho. Foi-se tudo embora. Esta é uma linha evolutiva sempre presente. Diria que é inevitável. Sem manutenção a estrutura envelhece rapidamente, sem vigilância os vândalos e salteadores violam cada metro do local. Uma solução interessante que encontrei em Tallin é o estabelecimento de uma espécie de coutada de Urbex. Uma associação local obteve permissão de “explorar” a prisão Patarei. Interveio subtilmente… colocou alguma iluminação, tem uma equipa de seguranças de aspecto temível a vigiar o local e a partir dai o visitante paga um bilhete (cerca de 3 Eur) e ganha assim acesso a uma boa parte da prisão… é um ambiente Urbex controlado… não foi transformado em museu como noutros sítios, mas é assim preservado.

Gosto tanto desta vida que já fiz viagens inspiradas pelo anseio de explorar um local abandonado: fui à Turquia por causa da cidade-fantasma de Kayakoy, à Síria por Serjilla e a Zaragoza expressamente para visitar Belchite, uma aldeia devastada durante a Guerra Civil Espanhola que nunca foi reconstruida.

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Experiências marcantes, momentos complicados, locais verdadeiramente extraordinários? Digo já que momentos complicados nunca tive. Agora… experiências marcantes, sim! Locais mesmo muito especiais? Vários! Caminhar pelo topo dos montes que envolvem Sarajevo e entrar em locais devastados pela guerra, subir ao último andar de um edifício arrasado de Mostar onde se abrigavam atiradores especiais que alvejavam civis inocentes foi único…  entrar no edifício futurista nas montanhas da Bulgária onde se realizava o Congresso do Partido Comunista e caminhar pela arena desolada, gelada, com a neve a cair lá fora, observado pelos olhos atentos de Marx, Lenine e Engels representados em enormes painéis de azulejos foi algo inesquecível… mas agora chega, porque tudo isto é afinal para apresentar a nova rubrica, Urbex, que passará a ter artigos regulares aqui no Cruzamundos.

2 COMENTÁRIOS

  1. Fantástico. Sem desprimor para todo o resto blog, este foi dos textos que mais prazer me deu ler. E olha que não tenho nada de Urbex! Ou talvez por isso mesmo, pela curiosidade de perceber um pouco melhor um “mundo” que, em grande medida, desconheço (exceto visto do conforto do sofá, através da belíssima série de reportagens “Abandonados”, da SIC). No fundo, e agora que penso nisso, talvez todos tenhamos um pouco de Urbex dentro de nós, pelo menos quando viajamos… 🙂
    Grande abraço e obrigado pela partilha.

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